Monday, July 24, 2006

Negros de gabarito

Negros de gabarito
Afrodescendentes popularizam invenção da elite branca e viram estrelas do futebol

O Combinado Henrique Dias era formado apenas por jogadores negros, tendo Popó como destaque

Foi notícia em 1931: "Embate entre negros do mais alto gabarito. O popular Popó, centromédio da seleção baiana, enfrenta o inigualável Fausto, a maravilha negra, eficiente armador do conjuncto do Vasco da Gama do Rio de Janeiro... Não há razão para perder importante pugna no Campo da Graça..."

Menos de duas décadas antes, o destacado encontro seria inimaginável. A Liga Bahiana de Desportos Terrestres não tolerava jogadores negros entre os seus filiados no início do século XX. Não se tratava de decreto oficial, mas virou regra dentro dos próprios clubes. Extinta somente em 1912, a Liga dos Brancos, como ficou batizada, refletia a segregação racial imposta pelo recém-chegado esporte bretão. A própria escravidão acabara de ser revogada, em 1888. Futebol era invenção da elite branca, trazido em 1901 por José Ferreira Filho, o Zuza, filho de ingleses. Praticado por famílias tradicionais e de recursos.

Bastou que a bola caísse nos pés de certo capoeirista do Rio Vermelho. O futebol de Popó fugia da severidade e rigidez inglesa. Gozava de ginga típica da capoeiragem. "Imagino que seu estilo era bem diferente do futebol medíocre que havia chegado da Europa", sugere o antropólogo e escritor Antônio Risério, que coloca Popó como um dos marcos do futebol brasileiro, símbolo do processo de apropriação popular do esporte. No livro Uma historia da Cidade da Bahia, Risério compara o craque do Ypiranga a Artur Friedenreich (El Tigre) e aos fenômenos do Bangu e do Vasco, no Rio de Janeiro.

Apesar do nome, Friedenreich era mulato de olhos verdes, descendente de mãe alemã, e foi o primeiro ídolo do futebol nacional. Em clubes paulistas, marcou incalculável quantidade de gols. Dizem que mais do que Pelé. "A popularidade de Friedenreich se devia mais pelo fato de ser mulato. O que abriu caminho para a democratização do nosso futebol", transcreve Risério, ao citar a publicação O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho. O autor sugere que o fenômeno se deu "involuntariamente", já que El Tigre "queria ser branco". Semelhante ao também mulato Carlos Alberto, atacante do Fluminense, que utilizava pó-de-arroz para embranquecer a pele e não destoar do restante da equipe, formada por jogadores brancos, ricos e educados. Mais tarde o time passaria a ser chamado de Pó-de-Arroz.

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Time de empresários

O Bangu era time de empresários, proprietários de uma fábrica carioca. Pouco a pouco os operários mestiços foram tomando o lugar dos mestres, engenheiros e técnicos ingleses. A equipe havia mudado de cor. O exemplo do Vasco é considerado a "queda da bastilha", conforme o livro Futebol arte: a cultura e o jeito brasileiro de jogar. Comerciantes cariocas selecionaram pretos e mulatos pela intimidade que eles tinham com a bola, e não pelos sobrenomes anglo-saxões. "As marcas registradas daqueles `pé-rapados´ era a habilidade e o improviso", reforça o livro. O time ganhou o campeonato da primeira divisão do Rio de Janeiro, ainda em 1923.

Da mesma forma Popó teria contribuído para a recriação do futebol, com a inteligência corporal específica de sua formação etnocultural. "Mestiçagem, capoeira, samba, malandragem. É daí que surge, entre tantas outras coisas, a matada suave da bola no peito, a deixada malandra, o gosto insuperável pelo quase samba no pé na hora do drible", diz o antropólogo. Uma revolução se operava no futebol brasileiro. Não se ganhava campeonatos só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Desaparecia a vantagem de ser de boa família.

Na Bahia, o Ypiranga era caso exemplar de democracia racial. Mas as coisas não mudaram de vez. Para jogar em clubes como o Bahiano de Tênis e a Associação Atlética era preciso passar por um crivo. "Preto não entrava no Bahiano nem pela porta da cozinha", lembra a música de Gilberto Gil. Seguia-se um fenômeno nacional. Alguns clubes no Rio e em São Paulo preferiram fechar as portas a aceitar negros nos seus plantéis.

Popó quebrou barreiras. Foi o primeiro negro a ser contratado pelo Bahiano. Mesmo assim não conseguiu atuar nem no Bahia, nem no Vitória, como reporta o ex-ponta esquerda Rubem, um dos jogadores da primeira formação tricolor, em 1931. Em depoimento ao jornalista Bob Fernandes, no livro Bora Bahêeea! A história do Bahia contada por quem a viveu, Rubem revela porque Popó não atuou nem no Bahia nem no Vitória, mesmo sendo a estrela do futebol baiano à época.

"Bob: Quem era Popó?

Rubem: Era um jogador de futebol que jogava com os pés e você tinha a impressão que jogava com as mãos. Capoeirista. Foi o primeiro preto que jogou no Bahiano de Tênis. Era doido pra jogar no Bahia.

Bob: E não tinha lugar pra ele no Bahia e no Vitória?

Rubem: Lugar tinha. Em qualquer lugar tinha lugar pra Popó. Não queriam era Popó...

Bob: Por que não?

Rubem: Simples: porque era preto.

Bob: O Bahia não tinha jogadores negros?

Rubem: Preto, preto, não tinha nenhum".

Resquícios de esporte originalmente aristocrático. Mais tarde se transformaria, inevitavelmente, em fenômeno popular. "As ligas proletárias queriam a todo custo entrar no futebol. Nessa época foi criada a Liga Brasileira de Esportes Terrestres, em substitição à Liga dos Brancos", conta o pesquisador e historiador esportivo Mário José de Souza Gomes. O futebol passou a dividir espaço com o turfe e com o remo. Antes restrito ao Campo da Pólvora, onde primeiro jogavam os ingleses, passou a ser praticado também no Rio Vermelho. Ali as partidas aconteciam no hipódromo, no "derby" ou "prado" do Rio Vermelho. Logo depois surgiu o Campo da Graça. "Não fazia sentido realizar partidas em local reservado para cavalos", explica o pesquisador.

Ali se disputavam os jogos oficiais. Enquanto isso, babas e mais babas se espalhavam pela antiga capital. De um deles saiu Popó. O jogo era simples. O único objeto indispensável era a bola. Na falta do couro, poderia ser feita de pano, bucho de animal, meia ou de papel enrolado com barbante. Até o linguajar futebolístico de terminologias inglesas começou a perder espaço. "Partida era match; juiz, referee; atacante, forward. Aos poucos esses termos se abrasileirariam para depois surgirem expessões locais, como banheira, bicuda, banho de cuia, nó. Que a elite ficasse com os seus teams", ironiza Antônio Risério.

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Nova dimensão racial

A malha negra e mestiça no esporte bretão influenciaria um time inteiro. Tendo Popó como destaque, o Combinado Henrique Dias, formado apenas por jogadores pretos, revelava a nova dimensão racial do futebol. Criado pelo desportista Beijamim Bompet, em 1921, o nome do combinado homenageava o herói da guerra holandesa, igualmente negro. O time chegou a vencer o campeão carioca Vila Isabel, no 1º aniversário do Campo da Graça, e despertou a admiração dos brancos. O próprio Popó, vestido em trajes de gala para a disputa do Campeonato Brasileiro de 1922, teve tratamento digno de autoridade. Antes de embarcar no navio Almazorra, foi batizado de "O Inglês da Embaixada" pela elegância que exibia. "Figura mais popular e eficiente do futebol baiano", anunciava a revista Semana Sportiva.

Faltava a convocação para a Seleção Brasileira. Mas um incidente gerado por discriminação racial, em Buenos Aires, teria impossibilitado a inclusão de Popó no "Scratch Nacional" que disputaria o Campeonato Sul-Americano na Argentina. O então presidente da República Epitácio Pessoa não recomendou a convocação de negros. Em grande fase na carreira, Popó não viu problema. Havia cumprido o seu maior papel. Agora o futebol era do povo.


Reporter, Correio da Bahia, 24.07.2006 - www.correiodabahia.com.br

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