Jornal de 1860 ilustra navio capturado quando ia para Cuba (Imagem New York Public Library) |
Organizado por historiadores da Universidade de Emory, em Atlanta, nos Estados Unidos, e de Hull, na Inglaterra, o banco de dados reúne quase 35 mil viagens de navios negreiros realizadas entre 1501, quando há registro da primeira leva de escravos, e 1867, quando o tráfico foi abolido.
O site, a que a BBC Brasil teve acesso, será lançado junto com um volume de ensaios cuja previsão é chegar às livrarias em janeiro de 2008.
O banco de dados é uma volumosa atualização de um CD-Rom lançado em 1999 por Richardson e o historiador David Eltis, de Emory, que continha informações sobre 27 mil viagens de navios negreiros.
Hegemonia
Para pesquisadores brasileiros, a nova edição online é ainda mais importante porque o grosso das informações adicionadas no banco trata de expedições à América Latina, em especial ao Brasil.
Mais de 5,2 mil jornadas de navios brasileiros e portugueses foram mapeadas pela primeira vez. Levando em conta todas as nacionalidades, quase 20 mil viagens que já estavam incluídas na primeira edição ganharam novos dados.
Eltis e Richardson sublinham que os novos dados mostram uma hegemonia de portugueses e brasileiros no comércio de escravos "bem maior do que pensávamos há cinco anos".
Embarcações brasileiras e portuguesas carregaram quase 5,8 milhões de escravos, cerca de 95% deles para o Brasil. Navios britânicos, que o senso comum julga serem os mais ativos no comércio negreiro, levaram cerca de 3,1 milhões.
"Os ingleses, na verdade, não foram os maiores mercadores de escravos, como muitos supõem. Agora, parece que a dominância britânica do tráfico de escravos se resumiu a apenas oito de treze décadas entre 1681 e 1807, entre dois longos períodos de hegemonia brasileira e portuguesa em que a participação britânica foi trivial", escrevem os pesquisadores.
'Chutômetro'
Os novos dados conferem nova dimensão a fatos já conhecidos de historiadores brasileiros, como o de que o comércio de escravos era dominado por agentes baseados no Brasil e não em Portugal – ou seja, na colônia, e não na metrópole.
Estudos conduzidos pelo historiador da UFRJ Manolo Florentino mostraram que três quartos dos mercadores que controlavam o tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro entre 1790 e 1830 eram sediados no Brasil.
Outra informação que o banco de dados contesta é a de que um contingente igual ao dos mais de 10 milhões de escravos que chegaram às Américas morreu na travessia.
O mapeamento indica que 12,5 milhões deixaram a costa africana durante o período da escravatura, ou seja, o número de mortos ficaria em torno de 2,5 milhões.
"Estas estimativas foram feitas em uma época em que se trabalhava com o 'chutômetro'", diz Florentino. "O trabalho de Eltis e Richardson tem o mérito de criar uma padronização, e de aproximar da realidade as estatísticas."
Mar de informação
Usuários poderão examinar de onde saiu e onde chegou cada uma das embarcações, a duração da viagem, quantos escravos foram comprados e vendidos (e a que preço), a nacionalidade do navio e até o nome do capitão.
Na introdução da obra, a ser publicada pela imprensa da Universidade de Yale, os organizadores esperam oferecer subsídios para o que chamam "uma nova era de estudos sobre o comércio escravagista".
Os artigos, assinados inclusive por pesquisadores brasileiros, como o historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, oferecerão uma primeira interpretação da mais completa base de dados sobre o tráfico negreiro disponível no mundo.
O professor David Richardson, da Universidade de Hull, explica que a idéia por trás do banco de dados é prover informações para que pesquisadores se debrucem sobre aspectos menos conhecidos do tráfico negreiro.
"Existe uma mudança em relação à pesquisa sobre o tráfico negreiro. Já temos o quadro geral de como a atividade funcionava, agora precisamos desconstruir essas viagens e analisar o que realmente acontecia nos navios", diz Richardson.
"O estudo do dia-a-dia do tráfico negreiro é que vai trazer seres humanos para dentro da História, fazer com que os escravos deixem de ser apenas números.".................
No ápice do tráfico, Brasil recebeu 775 mil crianças escravas
Crianças escravas aparecem em imagem de 1857 (Cortesia New York Public Library) |
Crianças foram ganhando a preferência dos traficantes porque, entre outros aspectos, eram mais "maleáveis" que adultos, indicam novas pesquisas publicadas duzentos anos após a lei britânica que proibiu o comércio de escravos.
No fim da era escravagista, um em cada três africanos escravizados era criança, nas estimativas do historiador David Eltis, da Universidade de Emory, em Atlanta, um dos maiores especialistas mundiais no tema.
Segundo Eltis, cerca de 12,5 milhões de escravos deixaram a costa da África entre 1500 e 1867, quando se tem registro do último carregamento. Em torno de 10 milhões chegaram aos seus destinos nas Américas.
Nos cálculos do pesquisador, dos 5,5 milhões de pessoas que tinham como destino o Brasil, apenas 4,9 milhões desembarcaram em portos brasileiros.
'Maleáveis'
Os dados de Eltis indicam que quase 2,3 milhões de escravos foram enviados ao Brasil entre 1800 e 1850 – destes, ele acredita que 775 mil eram crianças.
A alta proporção de menores de 15 anos entre os escravos já era conhecida dos pesquisadores – há estimativas que a colocam em até metade do total –, mas novos dados oferecem novas explicações para este fato.
Um estudo de caso publicado na última edição do Journal of Economic History pelos pesquisadores David Richardson, da Universidade britânica de Hull, e Simon Hogerzeil, do Centro Psicomédico Parnassia holandês, mostrou que crianças reagiam melhor à travessia que os adultos.
Richardson disse à BBC Brasil que, além disso, "no fim da era escrava havia uma percepção geral, por parte dos mercadores, de que as crianças eram mais maleáveis que os adultos, que poderiam ser treinadas em habilidades específicas".
Analisando 49 viagens de navios negreiros holandeses entre 1751 e 1797, os pesquisadores observaram que crianças eram compradas antes, porque reagiam melhor à experiência traumática.
Comparada à de um adulto, sua taxa de mortalidade era a metade, calcularam os pesquisadores.
No fim da era escrava havia uma percepção geral, por parte dos mercadores, de que as crianças eram mais maleáveis que os adultos, que poderiam ser treinadas em habilidades específicas. |
Assim, uma criança tinha mais chance que um adulto de passar longos períodos – até um ano, no caso estudado – dentro de um navio negreiro, entre todas as fases do tráfico.
Antes que o navio zarpasse para a viagem transatlântica propriamente dita, uma criança passava em média quatro meses dentro da embarcação – um prazo mais de 40 dias superior ao passado por homens.
"Em outras palavras, as estratégias de compra dos mercadores expunham crianças a riscos por mais longos períodos de tempo que os adultos", disse Richardson.
Em uma viagem típica, os navios da Middelburgsche Commercie Compagnie, que operava no oeste africano, zarpariam com 253 escravos, perderiam 33 ao longo do trajeto e venderiam 220 nas Américas.
Sobrevivência
As observações dos pesquisadores não eliminam a validade de explicações levantadas anteriormente, que atribuíam a forte escravização de crianças à escassez de adultos em determinadas áreas da África.
Outra razão, levantada em entrevista à BBC Brasil pelo historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca que senhores brasileiros podem ter sentido necessidade de "importar" mais mulheres e crianças para garantir mão-de-obra futura caso o tráfico negreiro fosse proibido.
Richardson e Hogerzeil destacaram, no entanto, que as condições de aprisionamento dos homens adultos podem estar relacionadas às taxas de mortalidade menores de crianças.
Os homens, comprados aos poucos durante a "fase de carregamento" do navio, entravam em grande quantidade no final da etapa, a menos de um mês ou até a menos de uma semana da partida, verificaram os pesquisadores.
"As condições dos escravos no momento da embarcação é criticamente importante para determinar por que eles sucumbiam mais durante a travessia", diz o estudo.
"Isto pode estar associado a pressões sobre os capitães para levar homens adultos para satisfazer as expectativas dos compradores, o que os encorajava a ser menos rigorosos na seleção."
"Os homens também eram tipicamente vistos como instigadores de rebeliões dentro dos navios, e sofriam mais fatalidades durante esses incidentes."
"Além disso", justificam os pesquisadores, "os homens eram normalmente encarcerados em celas separadas de mulheres e crianças, e normalmente ficavam presos por ferros, sobretudo quando o navio ainda estava próximo da África".
* Colaborou Sílvia Salek, de Londres.
BBCBrasil.com, 09.04.2004
http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/
2007/04/070405_escravos_database_pu.shtml