Monday, December 18, 2006
Miséria e abandono ameaçam sobrevivência de kiriris
O bom Cacique dos Kiriris, Lázaro
http://www.cidadaodomundo.org/?p=711
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População indígena reivindica tombamento pelo Iphan para evitar desaparecimento de povoado em Mirandela
Ciro Brigham
O sol é escaldante e a evapotranspiração faz tudo parecer miragem. O tudo, onde quase nada acontece, é um pequeno povoado no município de Banzaê, nordeste do estado, a 296 km de Salvador. Mirandela, primeiro lugarejo reconquistado pelos índios kiriris na década de 90, já foi palco de tensões e conflitos entre posseiros, fazendeiros e índios. Hoje, ameaça literalmente desabar diante do abandono e da miséria. Os tempos de paz são também de esquecimento. O que todos esperam agora é o tombamento do centro de Mirandela pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A gente de pele curtida que segue os passos do cacique Lázaro mora em casas deixadas pelos antigos moradores, brancos que desocuparam a área depois de um desgastante processo que resultou na morte de um índio, em 1995. São parte dos quase dois mil cidadãos que ganharam, por força da insistência e da pressão, o direito a usufruir de 12.299 hectares de terras demarcadas pelo governo federal em 1981, um octógono regular com ponto central na Igreja de Mirandela.
O lugar mais parece um povoado-fantasma. Não por não ter habitantes, visto que boa parte dos índios distribuídos pelo território demarcado escolheu viver em Mirandela. Mas pela ausência total de infra-estrutura a que estão submetidos os herdeiros dos novos tempos, pais, mães e filhos da reconquista histórica, à beira de uma poeirenta picada no meio do sertão.
Das 280 casas que restam em Mirandela, apenas 68 estão ocupadas. Todas eram das 336 famílias de posseiros que viviam no local. A maior parte das construções não resistiu à falta de recursos para frear o desgaste pelo tempo, ou às investidas vingativas de quem foi obrigado a deixar o local por força da lei. Terrenos cheios de mato por trás de casas abandonadas, fachadas destruídas, paredes desmoronadas, telhas arrebentadas: este é um dos retratos da vila central do território kiriri no nordeste do estado.
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Posseiros ainda não indenizados
Com a demarcação do território indígena e a retomada gradual dos povoados de Mirandela, Marcação, Pau-ferro, Gado Velhaco, Araçás, Baixa da Cangalha e Baixa do Juá, mais de seis mil posseiros tiveram que deixar a reserva. É gente que acabou indo para as periferias de cidades como Ribeira do Pombal, Euclides da Cunha, Cícero Dantas e Tucano. O governo federal, através da Funai, garantiu que indenizaria todas as famílias, mas isso não aconteceu. Até hoje, 11 anos depois da reconquista de Mirandela, 46 pessoas esperam por indenizações, sem saber quando e se vão receber.
O levantamento para as desapropriações já havia sido feito pela Funai em 1986, mas as primeiras 125 indenizações foram pagas somente em 1995, quando os posseiros começaram a deixar as terras dos kiriris. Isso depois que o cerco indígena para a retomada de Mirandela resultou na morte do índio Adão (que era surdo e mudo). O episódio inflamou o conflito e exigiu a presença da Polícia Federal por 90 dias, que, separando índios e posseiros por uma corda atravessada no meio da rua, delimitou a área dos dois grupos até a retirada dos antigos habitantes.
Dos que deixaram casas e terras para trás, alguns contaram com apoio político. “Juntamente com a prefeitura, o deputado Luís Eduardo Magalhães intercedeu e conseguiu reassentar 37 posseiros em Quijingue”, informa o cacique Lázaro. Outros receberam as indenizações em seguida, e 46 ainda não viram a cor da justiça. Um deles é o lavrador José Xavier de Souza.
Zé Cajueiro, como é conhecido, foi morador da Baixa do Juá e dono de uma roça de 70 tarefas na Lagoa do Batico, a três quilômetros de Mirandela, onde criava 35 cabeças de gado desde 1976. A Funai pagou a indenização da casa onde morava, mas não da terra de onde tirava o sustento. “Desde que eu nasci, já ouvia falar dessa história, então a gente sabia que a terra era dos índios. Como eu sempre tive uma boa relação com eles, entreguei a roça quando começou o movimento e fiquei esperando. Foram fazer a medição eu não estava lá, e até hoje não recebi”, conta Zé Cajueiro.
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Disputa entre jesuítas e Garcia D’Ávila
O povoamento e a exploração do “Sertão da Bahia” e do “Sertão de São Francisco” se deu a partir do século XVII, por determinação do Governo Geral de Portugal, então instalado no Brasil. A meio caminho de uma das entradas que iam de Salvador ao Rio São Francisco, ficavam Canabrava (hoje Ribeira do Pombal) e Saco dos Morcegos (Mirandela), onde viviam os índios Kiriris (ou Cariris), pertencentes ao tronco Jê, chamados Tapuias.
Os jesuítas Jacob Rolando e João de Barros lideraram as missões que ocuparam a região a partir de 1666, catequizando índios, construindo igrejas e edificando vilas. Entraram em conflito com o desbravador Garcia D’Ávila – cujos domínios iam do litoral da Bahia, entrando pelo sertão até os estados do Piauí e Maranhão – que considerava os índios propriedades suas, por estarem em “suas” terras.
O impasse junto aos padres, que entendiam os Kiriris como “propriedades” da igreja, chegou à guerra: Garcia D’Ávila matou 400 índios já rendidos. Os sobreviventes foram levados para Salvador, como escravos. Sentindo-se próximos demais do perigo que vinha pela estrada, aos poucos os índios foram se mudando para a aldeia vizinha mais afastada da via, Mirandela, onde a população cresceu bastante.
A meio caminho entre Salvador e o Rio São Francisco, rota de tropeiros, aventureiros e outros viajantes, a região de Pombal servia de parada para o repouso, principalmente a aldeia de Canabrava. Com a ocupação de inúmeras frentes pastoris e fazendas de gado instaladas a começar das margens dos rios, não tardaram os confrontos violentos entre os índios e os posseiros, que resultaram em massacres de ambos os lados, por gerações. Os kiriris conseguiram sobreviver heroicamente aos processos de colonização, aculturação e miscigenação, se identificando como nação autêntica, ainda que integrada à sociedade nacional.
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Paredes esburacadas
A estampa do esquecimento não se aplica apenas aos prédios abandonados: cobre também as residências ocupadas. Naquela onde vive o cacique, a luz do sol penetra por entre telhas quebradas e paredes esburacadas, que desafiam a lei da gravidade. Serviços essenciais, só mesmo aqueles pelos quais se paga, como luz elétrica e com boa vontade, água encanada. Coleta de lixo, nem pensar. “A prefeitura, se puder, manda o lixo para cá”, comenta o índio artesão Demar Santiago.
Os companheiros se riem. Talvez uma troça desse resquício de conduta referente à época em que o índio era tolerado apenas por satisfazer a mais-valia dos pequenos produtores rurais. “Os kiriris moravam em palhoças na serra, onde não se plantava nada, passavam fome e serviam de mão-de-obra barata para os posseiros de Mirandela”, relembra o cacique Lázaro Gonzaga de Souza, 66 anos.
Lázaro representa, como ele próprio diz, uma das duas “facções” dos kiriris de Banzaê, separadas por maneiras de pensar divergentes a respeito da preservação e resgate dos costumes antepassados. O outro grupo, liderado pelo cacique Manoel (que mora em um povoado vizinho, Araçás), aceitou o contato estreito com a religião católica e assumiu o “embranquecimento” das atitudes e maneiras de se portar. Somente os que seguem Lázaro fazem, por exemplo, questão de usar adornos indígenas (tangas e cocares) como reforço à identidade.
Isso não afasta os dois grupos de usufruirem igualmente dos direitos e benefícios concedidos através de órgãos como a Funai (Fundação Nacional de Apoio ao Índio) e a Anai (Associação Nacional de Ação Indigenista), e de conviverem com alguma harmonia, apesar de não se integrarem totalmente – herança de rixas que envolveram também os posseiros. “Hoje, nossos filhos vão jogar bola com os filhos de Manoel. Eles são índios também, como a gente”, apazigua o cacique de Mirandela.
Mais do que a confraternização aberta pelas veias do esporte, eles aguardam tombamento do centro de Mirandela pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Cacique Lázaro fala de um projeto “pra mó (sic) de restaurar as casas, reflorestar as áreas do entorno e criar um parque ambiental”. Os recursos, que estariam assegurados através da Embaixada do Canadá em Portugal, dependeriam do tombamento para liberação. “Viajarei este mês para Salvador, vou até o Iphan levar essa documentação”, promete o cacique kiriri, que espera voltar cheio de boas notícias e comemorar com o ritual do Toré. A idéia é solicitar o tombamento do centro de todos os povoados da reserva, gradativamente.
Caprinocultura - Articulado, o chefe indígena de um metro e meio diz que também está solicitando ao Banco Mundial a liberação de recursos para a caprinocultura, e que o Banco do Nordeste já assegurou verba de custeio de produção para 40 famílias da reserva indígena. Além da criação de gado, os índios plantam para o próprio consumo, produzem farinha de mandioca, extraem e vendem mel e se dedicam ao artesanato. Parte dele está exposto na Casa da Cultura Mirandela, um pequeno centro cultural bem no meio do vilarejo.
“O artesanato é vendido em Salvador, em exposição. Antes da reconquista, a gente não podia nem se identificar como índio, vivia escondido. Hoje, tudo o que eu tenho na vida é me orgulhar do que eu sou”, comenta Demar Santiago. “Hoje, a gente tem a nossa liberdade”, completa a esposa Maria Iracema.
Aqui Salvador, Correio da Bahia, 18.12.2006
www.correiodabahia.com.br
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