Friday, May 04, 2007

A última viagem de Cruz e Sousa


A última viagem de Cruz e Sousa

Escritor traz à tona uma suspeita histórica, que todos têm e que ninguém comenta: o sumiço do cadáver do maior poeta catarinense

Raul Arruda Filho, poeta de Lages

Especial para o Anexo

Lages ­ O escritor lageano Márcio Camargo Costa escreveu um poema que ainda vai dar muito o que falar. Composto inicialmente como letra de música para o grupo de Kako Xavier, de Porto Alegre, que trabalha com músicas de raiz africana, o texto coloca em xeque um dos mais significativos episódios da literatura catarinense, apesar de pouco lembrado pelas instituições "culturais": o destino do cadáver do poeta Cruz e Sousa.
Oficialmente não há nenhum mistério. Para Raimundo Magalhães Júnior, que escreveu uma das mais famosas biografias do poeta, Cruz e Sousa estava com tuberculose pulmonar e, por recomendação médica, foi passar algum tempo em um lugar chamado Sítio, no interior de Minas Gerais. Negro, sem dinheiro e tísico, acabou sendo despejado do hotel onde estava hospedado por não poder pagar a diária. Morreu nos braços de sua esposa, Gavita, em 19 de março de 1898. O corpo, dentro de um caixão simplório, foi transladado para o Rio de Janeiro dentro de um vagão ferroviário destinado ao transporte de animais (um horse-box).
Na então capital federal foi improvisada uma câmara-ardente na secretaria de administração da estrada de ferro, onde Cruz e Sousa era funcionário menor. O velório contou com a presença de alguns dos mais importantes intelectuais da época. Maurício Jubim fez um retrato do poeta, a crayon, em seu caixão mortuário. O enterro, realizado no início da tarde do dia 21, foi quase tão simples quanto a vida do poeta. A exceção foi o discurso emocionado de Nestor Vítor, um de seus melhores amigos. Os principais jornais da época destacaram a morte e a importância da obra de Cruz e Sousa.
A novidade proposta pelo poema de Camargo Costa se refere ao período em que o cadáver ficou dentro do horse-box e aos fatos que se seguiram. Utilizando diversas referências literárias ("Broquéis", "Últimos Sonetos", "Faróis", "Livro Derradeiro", "Simbolismo"), o escritor lageano destaca a hipótese de o corpo de Cruz e Sousa ter desaparecido enquanto era transportado para o Rio de Janeiro. Camargo Costa se fundamenta em várias observações lógicas, sendo que a principal é a decomposição do cadáver, o que impediria que o caixão fosse aberto quando chegou ao Rio de Janeiro. "Depois de dois dias, sem ter sido embalsamado, ou seja, em condições precárias de conservação, a putrefação foi inevitável", garante. Durante a viagem é possível que alguém, se sentindo desconfortável com o mau cheiro, tenha jogado o cadáver em campo aberto. Em seguida, para tentar esconder o que havia feito, encheu o caixão com pedras.
Outro detalhe que chama atenção do escritor é a ausência de fotografias do corpo. Na época, a fotografia era a grande novidade. Existem excelentes documentos iconográficos da Guerra do Paraguai, do imperador dom Pedro 2º e de diversos acontecimentos no Rio de Janeiro, além de diversos retratos do próprio Cruz e Sousa. "É muito estranho que não tenham aproveitado a oportunidade para retratar o poeta em seu último momento", declara.
Camargo Costa também não entende porque, até o momento, não houve um movimento para trazer o corpo de Cruz e Sousa para Santa Catarina. Na sua ótica esse é mais um indício de que o cadáver desapareceu. "Essa tese não é minha. Há suspeitas desde a época, inclusive da própria família. A literatura oral é rica em variações do episódio. O problema é que as instituições culturais e os donos do assunto costumam adotar como discurso oficial a versão menos amarga", afirma. E complementa: "A dúvida é mais instigante que a certeza. Só saberemos a verdade quando o corpo for exumado, se é que existe corpo, e realizarem um teste de DNA".
O poema
Cruz e Lousa
Márcio Camargo Costa

Somente cruz e lousa
Broquéis de tumba vaga, simbolismo
Ali, sepultaram pedras
Ao invés do gênio Cruz e Sousa
Últimos Sonetos, foi s'imbora
Indigente, tísico, morre na praça
Ai, Mama África chora
Cruz e Sousa, poeta-mor da raça
O livro derradeiro foi a infâmia
Os restos, no vagão de gado
Faróis na noite escura
"Joguem este negro fora
Encham o caixão de pedras
Que, do segredo, cuidará a sepultura"
Ai, Mama África chora
Somente cruz e lousa
Ali, enterraram pedras
No lugar do gênio Cruz e Sousa
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Cruz e Souza

Cruz e Sousa (1861 - 1898) João da Cruz e Sousa nasceu em Desterro, atual Florianópolis. Filho de escravos alforriados pelo Marechal Guilherme Xavier de Sousa, seria acolhido pelo Marechal e sua esposa como o filho que não tinham. Foi educado na melhor escola secundária da região, mas com a morte dos protetores foi obrigado a largar os estudos e trabalhar. Sofre uma série de perseguições raciais, culminando com a proibição de assumir o cargo de promotor público em Laguna, por ser negro. Em 1890 vai para o Rio de Janeiro, onde entra em contato com a poesia simbolista francesa e seus admiradores cariocas. Colabora em alguns jornais e, mesmo já bastante conhecido após a publicação de Missal e Broquéis (1893), só consegue arrumar um emprego miserável na Estrada de Ferro Central. Casa-se com Gavita, também negra, com quem tem quatro filhos, dois dos quais vêm a falecer. Sua mulher enlouquece e passa vários períodos em hospitais psiquiátricos. O poeta contrai tuberculose e vai para a cidade mineira de Sítio se tratar. Morre aos 36 anos de idade, vítima da tuberculose, da pobreza e, principalmente, do racismo e da incompreensão.


http://www.cruzesousa.com.br/

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