Thursday, August 31, 2006



Faz-de-conta

Sueli Carneiro
Doutora em Filosofia da Educação pela USP e diretora do Instituto da Mulher Negra (Geledés)



Acaba de ser lançado o livro Não somos racistas, de Ali Kamel, diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo. Produto de uma reflexão que o autor vem construindo no calor das disputas de opinião acerca das cotas raciais para negros e indígenas no acesso à universidade e em relação às quais ele vem se posicionando frontalmente contra em diversos artigos no jornal O Globo. As idéias são as de sempre: o risco das cotas promoverem cisão racial na sociedade; não há problema racial no Brasil, apenas social; e a impossibilidade de determinar quem é negro, porque somos um país miscigenado.

Dentre as menções apologéticas ao livro de Kamel lê-se que “o título do livro não é uma negação de que o racismo existe em todo lugar onde há seres humanos, mas um gesto de indignação contra a sugestão de que o ódio racial seja um componente da identidade brasileira”. Então, há racismo em todo lugar; no entanto, o dos nossos compatrícios não gera conseqüências sociais, pois o ódio racial não seria um componente da identidade brasileira, senão não seríamos um país miscigenado.

Isso permitiria concluir, por exemplo, que há países em que o ódio racial seria um componente de sua identidade nacional. Ora, o ódio racial não é componente da identidade nacional de povo nenhum. Racismo é apenas e somente um instrumento de promoção de privilégios e exclusões com base em supostas superioridade, inferioridade ou simples preferência racial; uma ideologia passível de ser encampada em qualquer tempo, lugar e conjuntura em que se pretenda estabelecer e legitimar poderes e privilégios de um grupo humano sobre outro. É só e sempre disso que se trata e o que ele sempre produz é somente isso, hegemonia para um grupo e subalternidade quando não também extermínio para outro. E a manifestação violenta do conflito racial é apenas uma de suas possibilidades; há outras mais sutis e, sob certos aspectos, mais eficientes, em que as suas vítimas ficam impedidas inclusive de mobilizar a identidade racial em sua auto-defesa.

A utilização da miscigenação como suposta prova de ausência de racismo e discriminação racial faz supor que em países em que se praticou racismo legal ou que viveram conflitos raciais explícitos, a miscigenação tenha sido um fenômeno ausente ou irrelevante. Uma inverdade. Basta caminhar por cidades americanas ou alemãs para verificar a quantidade de negros de pele clara, que aqui seriam classificados ou se autodeclarariam brancos, pardos ou mestiços e que lá são simplesmente afro-alemães ou afro-americanos ou seja, negros. O problema não está portanto na miscigenação e sim na classificação racial ou de cor que se adota. Aqui, um tom mais claro em relação à negritude é saudada como a porta redentora do embranquecimento ou da indeterminação racial pela qual se decreta que temos que renunciar a nossas cores e racialidades, sob pena de estarmos nos insurgindo contra o que segundo o autor há de melhor em nossa identidade nacional, a ausência das nossas cores e das nossas raças sociais. Dessa perspectiva, a sua tentativa de decretar a morte das cores e da racialidade é a de negar o direito a uma identidade que é forjada nas cores dos nossos corpos que se tornam estigmas ou fontes de privilégios a partir dos quais se realizam as exclusões e as preferências. É essa dupla negação que é imposta, a do reconhecimento da identidade e do tratamento diferenciado que ela recebe na vida social. Boaventura, em seu artigo “As dores do pós-colonialismo”, afirma que “só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência possível dessa democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social”.

Num país miscigenado como pretende Kamel, em que a cor da população seria algo indeterminado entre o branco e o preto, encontra-se na programação da TV Globo, e em especial em suas novelas, uma das maiores densidades de olhos, peles e cabelos claros por metro quadrado do mundo. Como “não somos racistas”, essa presença quase escandinava se deveria, segundo mais um dos apologistas do livro de Kamel, a um mérito que “a República tem tido nesse pouco mais de um século que está em vigor: não olha a cor quando examina o talento”. Disso se conclui que a presença minoritária dos negros e os personagens irrelevantes ou caricatos que, em geral, desempenham é o que corresponde aos seus “talentos”!

Essa publicação decorre de uma urgência conjuntural e é produzida em tempo recorde, com divulgação ampla e crítica generosa garantida, para atender à necessidade de reverter uma opinião pública que, cansada das fábulas e dos mitos que adoçaram as nossas mazelas sociais, começa a preferir encarar de frente essas questões. Chegamos ao patamar de consciência social em que não é mais possível “tapar o sol com a peneira”. Vivemos num país desigual, em que pobreza e riqueza têm cor e por mais que isso nos incomode, pelo que põe a nu a crueldade de nosso “racismo cordial”, já não é mais possível reiterar esse persistente faz-de-conta.

Jornal Correio Braziliense - coluna Opinião - 31/08/06

Monday, August 28, 2006

Atlas resgata a história e cultura dos negros no país



EDUCAÇÃO



Jony Torres

Uma cardápio de informações para recuperar e valorizar a ação da colonização africana no Brasil. É desta forma que o antropólogo Raul Lody define a sua mais recente obra, o Atlas Afro-Brasileiro Cultura Popular, a ser lançado hoje, às 19h, na livraria Siciliano, Shopping Barra, uma publicação das Edições Maianga. O livro tem 84 páginas, nas quais textos, desenhos, gráficos e fotografias se unem para oferecer ao leitor um panorama amplo de como a cultura brasileira guarda em suas origens o tempero dos irmãos negros do além-mar. As ilustrações são de Humberto Araújo e as fotografias de Sérgio Guerra.
O livro não é dirigido especificamente aos estudantes, mas vai facilitar o cumprimento da Lei nº10.639, de 9 de janeiro de 2003, que prevê a obrigatoriedade no currículo oficial da rede de ensino, da história e cultura afro-brasileira. Sem se aprofundar em demasiado, a publicação tem leitura leve e, como em qualquer atlas, privilegia a informação gráfica, e funciona como um guia para professores, muitos sem a formação básica o suficiente para tratar do assunto com os alunos nas escolas. “Acho que consegui chegar ao ponto desejado. Ele tanto serve como suporte para o trabalho dos educadores, como é uma porta para quem quiser mergulhar no amplo universo afro-brasileiro”, acredita Lody.
Raul utiliza das mais variadas manifestações culturais presentes nas cinco regiões do país para traçar a trajetória das culturas trazidas e aqui disseminadas em diferentes formas. A culinária, a música, as religiões, o vestuário e a estética do povo negro são pontuados por todo o livro e revelam, por exemplo, mais de 70 tipos diferentes de tambores ainda hoje encontrados e todos de origem africana. “O recorte da cultura popular e a forma pontuada são elementos fundamentais para atrair a atenção do leitor e causar uma identificação imediata, um chamado para instigar o pensar e a curiosidade sobre o tema”, justifica Lody.
Um universo que, segundo o autor, começa bem antes do início da onda imigratória estimulada pelo comércio de escravos para o labor nas lavouras do Brasil Colônia. “O homem moderno, em suas origens, saiu da África e aparentemente colonizou o planeta”. Deste pressuposto baseado em análises científicas, colocado logo na abertura do primeiro capítulo, Lody espera não deixar espaços para atitudes preconceituosas.
“Minha carreira na antropologia é marcada, entre outros aspectos, pela luta contra o racismo, e desta maneira apresento a todos como filhos da mãe África, numa desconstrução de qualquer tipo de preconceito”, acentua o autor. Entre livros, artigos, filmes e páginas na internet, o carioca Raul Lody já publicou mais 500 obras. Nascido em 1952, é antropólogo, estudou em Portugal, Senegal e se formou doutor em etnologia na França.




Aqui Salvador, Correio da Bahia, 29.08.2006 - www.correiodabahia.com.br

Sunday, August 27, 2006

GRUMIN/Rede de Comunicação Indígena

O Núcleo de Escritores indígenas do INBRAPI ( Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual), sob coordenação de DANIEL mUNDURUKU, estará mais uma vez promovendo o

III ENCONTRO NACIONAL DE ESCRITORES E ILUSTRADORES INDÍGENAS

VIII SEMINÁRIO DE LEITURA E LITERATURA INFANTIL E JUVENIL


DIA 30, DAS 9 às 17 horas, MUSEU DE ARTE MODERNA, MAM/RIO DE JANEIRO /BRASIL

Mesa 1: Vozes femininas nas narrativas e na educação indígena.

Eliane Potiguara - Coordenadora

Narúbia Karajá

Darlene Taukane

O Objetivo desta mesa é trazer para o debate a participação da mulher indígena na organização social e na educação das crianças indígenas.

Mesa 2: Como trabalhar a literatura indígena em sala de aula

Daniel Munduruku – Coordenador

Ely Makuxi

Justino Tuyuka

Esta mesa tem como objetivo mostrar como é possível trabalhar a temática indígena de forma a auxiliar os educandos na compreensão da diversidade cultural e lingüística brasileira.

Mesa 3: Sendo muitos, somos um: Diversidade e Tolerância.

Ailton Krenak – Coordenador

Lúcio Terena

Olívio Jekupé

Esta mesa discutirá como a diversidade indígena é pouco conhecida pela sociedade brasileira resultando numa situação de exclusão, marginalização e intolerância.

Mesa 4: Ilustrando a diferença: A arte na educação indígena

Justino Sarmento – Coordenador

Cristino Wapixana

Yaguarê Yamã

Esta mesa procurará mostrar como a sociedade indígena não faz separação no ato de educar de modo que a criança aprende todos os elementos importantes e necessários para crescer em liberdade.

Direito à educação

Direito à educação

Anderson, Rachel, Paulo Henrique, Leandro e Gabriel fazem parte da primeira geração de estudantes a ingressar no ensino público superior pelo sistema de cotas para negros e alunos da rede pública. A maioria se forma no começo de 2007

Rio - No perverso gargalo da educação brasileira, estudantes de origem humilde que chegam aos bancos universitários são sobreviventes no elitizado mundo acadêmico. Enquanto o País discute, no Congresso, projeto de lei que institui 50% das vagas nas universidades federais para alunos da rede pública, no Rio a Uerj e a Uenf se preparam para dar o diploma aos primeiros cotistas brasileiros, que se formam em fevereiro.

Em meio a debates acalorados com direito a manifestos pró e contra as cotas, uma situação muito grave vem preocupando os reitores: as vagas disponíveis para cotistas não estão sendo preenchidas. Em 2003, primeiro ano de implantação do programa, o sistema atraiu 8.533 candidatos. Este ano, foram 3.620 estudantes. Em quatro anos, a queda chega a 57,58%.

Não bastasse a procura cada vez menor, também vem caindo o total de matrículas. No primeiro ano do programa, foram preenchidas 3.081 vagas na Uerj e Uenf. Em 2005, apenas 1.753 lugares foram ocupados. “As que não são preenchidas são transferidas para alunos que entraram sem cota”, diz a sub-reitora de Graduação da Uerj, Raquel Villar.

OCIOSIDADE DE 60%

O quadro chama a atenção do pró-reitor de graduação da Uenf, Almy Cordeiro de Carvalho. “Estamos tendo ociosidade de vagas na ordem de 60%. O aluno carente não está batendo na porta da universidade. Precisamos reverter isso”, afirma. Segundo ele, três razões explicam em parte o porquê da desistência sem tentar ao menos o vestibular: dificuldade em preencher os requisitos para concorrer; a prova final exige acerto de 20% das questões (antes bastava não zerar); e falta de programas de permanência — a bolsa de R$ 190 é no primeiro ano.

“Gostaríamos de pagar nos quatro anos do curso, mas não há recursos”, lamenta Cláudio de Carvalho Silveira, coordenador-adjunto do Proiniciar (Programa de Iniciação Acadêmica). Também faltam alojamento e bandejão. “As cotas estão aí como reparação de 388 anos de escravidão e mais 100 de exclusão. Mas é preciso que eles tenham condições de se manter na instituição”, defende Frei David, diretor da Rede de Pré-vestibulares Educafro, que mantém 255 cursinhos comunitários no Rio e em São Paulo.

A Uenf acaba de divulgar primeiro diagnóstico sobre eficácia das cotas. O estudo mostra que a maior parte dos universitários negros de Campos estuda na rede privada. A pesquisa ouviu 1.111 estudantes negros e constatou que a maioria cursou escolas públicas, mas não foi aprovada na Uenf.

Em 2004, entraram 60 negros por cotas e este ano, 15. “As particulares estão conseguindo incluir negros com bolsas e as públicas, não”, avalia a autora da pesquisa, Shirlena Campos, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Uenf.

AO FIM DO CURSO, DIPLOMA NA MÃO E HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO

Dos 3 mil estudantes cotistas aprovados no Vestibular 2003 da Uerj e Uenf, mil ficaram pelo caminho. Quem resistiu leva com o diploma — em fevereiro do ano que vem — histórias de superação, preconceito e carências. São estudantes que driblam o destino e não se contentam com a proeza de entrar na universidade pública, que recebe apenas 2% dos jovens brasileiros, com idade entre 18 e 24 anos. Depois que entram, ainda conseguem superar os sem-cota.

É o que mostra estudo sobre o desempenho acadêmico de estudantes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em 2004. O acompanhamento revela que os cotistas dos cursos de Engenharia Civil, Agronomia e Medicina Veterinária obtiveram notas mais altas do que os alunos que entraram da forma tradicional. O que mais chama a atenção é que o rendimento dos cotistas foi melhorando ao longo da faculdade. Nos cursos citados, as notas obtidas no vestibular eram inferiores ao dos alunos não-cotistas. “É a prova de que vestibular não mede a capacidade de ninguém”, afirma Renato Ferreira, do Programa Políticas da Cor, da Uerj.

Pesquisa inédita do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj avaliou “Quatro Anos de Políticas de Cotas no Brasil”, na visão de 558 professores de instituições que adotaram o sistema — UnB (Brasília), Ufal (Alagoas), Uneb (Bahia) e Uerj (Rio). O estudo derruba um dos principais mitos contra o sistema. Para 79,6% dos professores, o nível acadêmico ficou igual após a implantação das cotas.

‘GUERRILHEIROS’

Entre os que deram aula para alunos cotistas, 74% avaliam como bom ou muito bom o desempenho deles. “Alunos que têm pais analfabetos sabem o peso do mandato que carregam. São os primeiros de uma geração a ter diploma nas mãos”, explica Pablo Gentili, um dos coordenadores da pesquisa.

Coordenador do programa Jovens Talentos da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia, Cláudio Cerqueira acredita que o bom resultado se deve à dedicação exclusiva dos professores da Uenf. Todos têm doutorado e fazem pesquisa. “Cotista é como guerrilheiro. Não desiste. Quando está em desvantagem, some, tranca matrícula, mas não larga a luta”, compara.

O Dia Online, 27.08.2006 - http://odia.terra.com.br/rio/htm/geral_53814.asp

Quilombolas passam por avaliação nutricional






Sete comunidades da Bahia foram incluídas na avaliação nutricional de crianças quilombolas realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que coletará dados de cerca de quatro mil crianças com idade até 5 anos em todo o país. Os meninos e meninas, que vivem em áreas remanescentes de quilombos, têm sua altura e peso verificados. As mães, por sua vez, respondem a um questionário sobre alimentação, acesso aos programas sociais e assistência à saúde dos filhos. O objetivo é verificar os motivos da desnutrição e a eficácia dos programas sociais de todas as esferas do governo. O resultado será divulgado até o final do ano.
Esta é a primeira vez que o Brasil realiza uma pesquisa de avaliação nutricional da população dos quilombos. O levantamento, feito por amostragem, inclui 60 comunidades de 22 estados, e é uma iniciativa do MDS, Ministério da Saúde, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). O levantamento, intitulado Chamada Nutricional, inclui, na Bahia, as comunidades quilombolas Galeão (Cairu), Barreiro dos Negros (Itaguaçu da Bahia), Jenipapo (Malhada), Barra dos Negros (Morro do Chapéu), Monte Vidinha (Santa Maria da Vitória), além de Mangal Barro Velho (Sítio do mato) e Nova Esperança (Wenceslau Guimarães). A ação teve início no último dia 23 e será concluída amanhã, durante o período da campanha de vacinação.
Em Barreiro dos Negros (Itaguaçu da Bahia), distante 531 quilômetros de Salvador, a avaliação nutricional foi melhor do que se esperava, segundo a nutricionista e multiplicadora do projeto, Danile Barreto. Apesar de ainda não ter o resultado do estudo, que, no local, teve início no último dia 24 e terminou ontem, pôde-se verificar que o peso da maior parte das crianças correspondia à sua altura e idade. Na comunidade, 150 meninos e meninas foram avaliados e aqueles que não puderam comparecer foram abordados em suas próprias casas. A divulgação para a “Chamada” foi feita por um carro de som que também anunciava a vacinação contra a poliomielite.


Aqui Salvador, Correio da Bahia, 27.08.2006 - www.correiodabahia.com.br

Saturday, August 26, 2006

Carta Aberta pelas Ações Afirmativas

Prezadas/os
Esse texto foi elaborado pelo GT de Ações Afirmativas e lido na abertura do seminário institucinal promovido pela ufgrs sobre a pauta. Vale citar a brilhante exposição da Dra. Dora Bertulio, procuradora da federal do paraná.

Zapata
Porto Alegre, 21 de Agosto de 2006.

CARTA ABERTA
Ao professor José Carlos Hennemann
MD: Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Ao Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Prezadas/os,
Diante dos debates públicos e dos embates ideológicos neles subjacentes, vimos por meio desta manifestar mais essa contribuição para a realização positiva desse seminário, manifestar, sobretudo, nossas preocupações com a forma de tratamento das demandas em pauta, como também apresentar nossas sugestões, solicitações e exigências as instâncias deliberativas desta Universidade. Assim, considerando:
  1. Que as Nações têm se comprometido em reparar os resultados nefastos da colonização racista européia, expressos nos pactos internacionais como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de Durban, resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001.
  2. Que a reparação dos erros cometidos contra povos inteiros é um movimento que vem ocorrendo no mundo todo, conforme a II Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora, ocorrido em Salvador entre 12 e 14 de Julho de 2006, que reafirma o tráfico negreiro, a persistente pirataria, a espoliação e o genocídio dos povos africanos e indígenas, bem como a escravização desses como CRIMES CONTRA A HUMANIDADE. Ressaltando-se que o Brasil é signatário de todas essas conferências e pactos jurídicos internacionais.
  3. Que o povo africano e indígena foram fundamentais na construção econômica, cultural e política desse Estado-Nação e ao mesmo tempo violentados física, psíquica e moralmente durante toda a história da nação brasileira. Subjaz à nossa história o sangue desse genocídio: nunca devemos nos esquecer disso!
  4. Que o Estado brasileiro favoreceu, manifestando um racismo de estado, a chegada de imigrantes europeus com doações de terras, incentivos financeiros e isenções fiscais durante o século XIX e início do século XX, mantendo-se atualmente na forma de espaços privilegiados de investimento público. Na contramão os descendentes de africanos e indígenas que trabalharam para produzir a acumulação primitiva do capital brasileiro foram alijados de qualquer partilha da riqueza nacional.
  5. Que, ao mesmo tempo em que os povos originários e africanos nessa terra forneceram valiosos conhecimentos, em todas as áreas, para a sobrevivência e estruturação da sociedade, somos vítimas de uma produção discursiva falsificadora que nos apresenta como seres subumanos desprovidos de capacidades intelectuais e de existência espiritual.
  6. Que a elite branca brasileira ao invés de projetar uma nação verdadeiramente democrática e multirracial, preferiu por empreender um projeto de extermínio físico, cultural e cromático via ideologias do branqueamento, da democracia racial e da miscigenação, ainda em curso no nosso país. Uma miscigenação compulsória forjada no estupro bizarro das nossas Avós africanas e indígenas, as Guerreiras Ancestrais.
  7. Que as organizações do povo negro desde o início do século XX tem alertado o Estado e sociedade brasileira sobre a urgência de políticas de Ações Afirmativas para corrigir as desigualdades raciais herdadas da estrutura escravocrata e mantidas pelos dispositivos construídos pelo racismo silencioso, letal e cínico.
  8. Que a Força Espiritual e as Organizações dos Povos Indígenas contemporâneos têm manifestado, cada vez ainda mais tenaz, o desejo de continuarem existindo nesse mundo e se realizarem na contemplação divina das formas mágicas presenteadas pela Grande Mãe. Portanto, o extermínio e a assimilação/integração compulsória e subalterna precisam ser eliminados enquanto projeto de Estado e desejo da sociedade nacional e, em vez disso, assegurados os direitos invioláveis da manutenção das suas/nossas culturas e formas específicas de subjetividades, bem como, garantir a propriedade territorial e acesso àquilo que possa ser considerado "benesses" dessa sociedade. As vozes e vidas indígenas estão para o futuro, resistem no presente porque não pararam no passado.
  9. O reconhecimento da sociedade brasileira ao heroísmo do Quilombo dos Palmares e da atuação de Zumbi e Dandara na liderança daquele povo, expresso nas manifestações políticas e culturais em vinte de novembro de cada ano após a Grande Marcha de 1995 na cidade de Brasília.
  10. Que após a conferência de Durban em 2001, o debate acerca das Ações Afirmativas/cotas para negros e índios teve um acirramento fantástico na sociedade brasileira, bem como, primeiros ensaios de implantação dessas políticas, inclusive em órgãos ministeriais do Governo Federal.
  11. Que os argumentos disparados contra o avanço das demandas sociais e políticas do povo negro e indígena foram suplantados pelos fatos, pesquisas, dados oficiais e acadêmicos no debate público como, por exemplo, o discurso que tenta fazer sobreviver o ‘mito da democracia racial’ e da miscigenação afetivo-sexual nas supostas relações harmônicas entre as raças e etnias constitutivas do Brasil foi desmascarado como mais uma dissimulação racista do pacto da branquitude após a produção e divulgação de dados oficiais acerca das desigualdades raciais e, sobretudo, quando esses dados permitiram maior visibilidade a cor das mortes por homicídios nesse país.
  12. Que a busca da convivência e desejo de perseguir o ideal republicano e democrático da igualdade não possam mascarar as desigualdades engendradas sob a égide da diversidade religiosa, de gênero, sexual e, ao nosso caso, étnico-racial, pois, o princípio jurídico da igualdade tem sido acionado, nas sociedades multirraciais pós-coloniais como mais um dispositivo de manutenção das desigualdades e dominações, desenhando relações raciais e sociais contrárias ao que se propõe apregoar.
  13. Que é inconteste a fragilidade, a má-fé e a falsidade ideológica dos argumentos que reclamam pelo mérito como a forma de inclusão nas universidades públicas e nas outras instituições desse Estado-Nação, bem como, é atentatória a dignidade e mesmo agressiva a idéia segundo a qual a inclusão de índios e negros afetaria a suposta qualidade e excelência acadêmica produzidas nessas universidades.
  14. Que a recusa, por essa Universidade, em reconhecer que as Ações Afirmativas/Cotas para indígenas e negros é uma dívida histórica que deve ser paga agora, indiciará a continuidade do beneficiamento exclusivo dos descendentes de europeus, como também, manterá as dores e as fraturas dessa história ainda em pleno vigor.
Portanto, senhor reitor, senhoras e senhores conselheiros, palestrantes, cidadãs e cidadãos aqui presente, tendo em vista o exposto, exigimos da administração desta Universidade que institua, no prazo de quinze dias, uma COMISSÃO para elaborar o Programa de Ações Afirmativas/Cotas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para que, no prazo de um mês, entregue ao Conselho Universitário desta instituição o projeto/resultado dos trabalhos PARA SER VOTADO EM REGIME DE URGÊNCIA até o mês de outubro do corrente ano conforme previsão anterior da reitoria.
Deve-se assegurar, ainda, a representação dos Movimentos Sociais Negros e Indígenas, bem como de outras organizações da sociedade civil que se façam legítimas na formação dessa Comissão, sobretudo, reconhecendo a contribuição deste GT.
Assim, chamamos a todas e a todos, aqui presentes, para o necessário crescimento humano e moral que esse movimento nos enseja. Lembramos, sobretudo, a desventura dos históricos Lanceiros Negros, os exímios combatentes na Revolução Farroupilha, que, ao empreenderem mais uma contribuição do povo negro-africano à constituição desta nação, foram TRAÍDOS pelo pacto de dominação branco-européia. Da mesma forma que os Lanceiros Negros, desejamos constituir e formar essa sociedade, então, instamos aos gestores, estudantes e professores desta universidade a não permitirem a continuidade dessa traição covarde e que aprovem, sem mais delongas, as COTAS PARA NEGROS E INDÍGENAS JÁ!!!
GRUPO DE TRABALHO DE AÇÕES AFIRMATIVAS DA UFRGS

Recuperada Igreja do Rosário dos Pretos


Recuperada Igreja do Rosário dos Pretos 25/08/2006 - 16h47m

Entre as obras recuperadas com recursos do programa Monumenta na Bahia está a Igreja de Nossa Senhora do Sagrado Coração do Monte Formoso, mais conhecida como Igreja do Rosário dos Pretos, um símbolo da afro-religiosidade no Brasil.

A igreja, fundada em 1846, estava em desuso e já não existia sequer vestígios do altar e dos elementos decorativos. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foram necessárias ações na estrutura do prédio, que estava ameaçado, e, na área interna, a restauração da nave da sacristia, o coro, a capela-mor, o ossuário e a assembléia dos cardeais.

Segundo o historiador Luiz Cláudio Nascimento, morador de Cachoeira (BA), a igreja foi fundada por africanos libertos que moravam na região e foram responsáveis pela criação de um dos primeiros terreiros de candomblé do Recôncavo Baiano e da Irmandade da Boa Morte, formada por mulheres negras adeptas do candomblé.

'A igreja representa hoje um dos marcos da afro-religiosidade, porque aqui são sepultados a maior parte dos pais e mães-de-santo do Recôncavo baiano', avalia Nascimento.

Fonte: Agência Brasil

IBahia.com

Foto: A saída do corpo de Nossa Senhora morta,
agosto 2000 - Tatsuhiro Yazawa

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Irmandade da Boa Morte

A história da confraria religiosa da Boa Morte se confunde com a maciça importação de negros da costa da África para o Recôncavo canavieiro da Bahia, onde o gênio aventureiro ibérico edificou belas cidades como a de Cachoeira, segunda em importância econômica na Bahia durante três séculos. O fato de ser constituída apenas por mulheres negras, numa sociedade patriarcal e marcada por forte contraste racial e étnico, emprestou a esta manifestação afro-católica, como querem alguns, notável fama, seja pelo que expressa do catolicismo barroco brasileiro, de indeclinável presença processional na rua, seja por certa tendência para a incorporação aos festejos propriamente religiosos de rituais profanos pontuados de muito samba e rega-bofe. Há que acrescentar ao gênero e raça dos seus membros a condição de ex-escravos ou descendentes deles, importante característica social sem a qual seria difícil entender tanto aspectos ligados aos compromissos religiosos da confraria, onde ressalta a enorme habilidade dos antigos escravos para cultuar a religião dos dominantes sem abrir mão de suas crenças ancestrais, como também aqueles aspectos ligados à defesa, representação social (porque não?) política dos interesses dos adeptos.

Origem Remota e uma Luta Antiga

No Brasil Colonial e depois, já no país independente mas ainda escravocrata, proliferaram irmandades. Para cada categoria ocupacional, raça, nação - sim, porque os escravos africanos e seus descendentes procediam de diferentes locais com diferentes culturas - havia uma. Dos ricos, dos pobres, dos músicos, dos pretos, dos brancos, etc. Quase nenhuma de mulheres, e elas, nas irmandades dos homens, entraram sempre como dependentes para assegurarem benefícios corporativos advindos com a morte do esposo. Para que uma irmandade funcionasse, diz o historiador João José Reis, precisava encontrar uma igreja que a acolhesse e ter aprovados os seus estatutos por uma autoridade eclesiástica.

Muitas conseguiram construir a sua própria Igreja como a do Rosário da Barroquinha, com a qual a Boa Morte manteve estreito contato. O que ficou conhecido como devoção do povo de candomblé. O historiador cachoeirano Luiz Cláudio Nascimento afirma que os atos litúrgicos originais da Irmandade de cor da Boa Morte eram realizados na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, templo tradicionalmente freqüentado pelas elites locais. Posteriormente as irmãs transferiram-se para a Igreja de Santa Bárbara, da Santa Casa da Misericórdia, onde existem imagens de Nossa Senhora da Glória e da Boa Morte. Desta, mudaram-se para a bela Igreja do Amparo desgraçadamente demolida em 1946 e onde hoje encontram-se moradias de classe média de gosto duvidoso. Daí saíram para a Igreja Matriz, sede da freguesia, indo depois para a Igreja da Ajuda.

O fato é que não se sabe ao certo precisar a data exata de sua origem. Odorico Tavares arrisca uma opinião: a devoção teria começado mesmo em 1820, na Igreja da Barroquinha, tendo sido os gêges, deslocando-se até Cachoeira (Bahia), os responsáveis pela sua organização. Outros ressaltam a mesma época, divergindo quanto à nação das pioneiras, que seriam alforriadas Ketu. Parece que o “corpus” da irmandade continha variada procedência étnica já que fala-se em mais de uma centena de adeptas nos seus primeiros anos de vida.

Historicamente essa data parece fazer sentido. Desde o início do século passado o Recôncavo viveu uma atmosfera de progresso e novas técnicas agrícolas e industriais ali são introduzidas. Em que se pese as dificuldades momentâneas da economia açucareira, o fumo ganhou novo alento quando começa a interessar, após a independência política do país, ao capital alemão. A inauguração do serviço de navegação a motor favorece esses bafejos de renovação econômica, estimulando a integração do Recôncavo com a Capital da Província e o aumento dos seus negócios, o que favorece a construção de sólidos laços entre os negros escravos de muitas cidades, sobretudo de Salvador e Cachoeira (Bahia). Jeferson Bacelar chama a atenção para o fato de que a década de 1820, sobretudo os seus três primeiros anos, é marcada por acentuado processo de agitação e acirramento dos ânimos da população baiana, boa parte da qual, sem distinção social, encontra-se envolvida na luta pela Independência, aqui caracterizada por forte espírito anti-lusitano e refregas armadas. O clima de distensão entre senhores e escravos, suscitado por essa “unidade” momentânea, contribuiu para permanentes deslocamentos dos negros pelas cidades do Recôncavo, onde os senhores manifestaram incomum atenção na resolução do conflito e, para defenderem seus interesses, armaram os escravos e os utilizaram contra os portugueses. Dessa excepcional conjuntura resultaram inúmeras iniciativas religiosas e civis dos escravos, entre as quais, quem sabe, a própria Irmandade da Boa Morte.

O pesquisador Antônio Morais Ribeiro associa seu surgimento às senzalas, apostando na conjuntura abolicionista pós-Revolta dos negros islamizados na Bahia que se deu em 1835 e foi barbaramente esmagada. Quem sabe daí o toque claramente muçulmano na morfologia tradicional dos trajes de grande força e rara beleza, realçados pelo uso do turbante, como assinala Raul Lody. Antônio Morares acredita que uma das presumíveis líderes da Revolta Islâmica, Luiza Mahim, em pessoa, esteve envolvida na constituição da Irmandade, após a sua fuga de Salvador para o Recôncavo.

Conjecturas à parte, estas confrarias - religiosas ou não - como foi o caso da estudada pelo antropólogo Júlio Braga - a Sociedade Protetora dos Desvalidos - faziam mais do que cultuar santos católicos e orixás patronos dos seus afiliados. Ao tempo que aparentemente atendiam exigências eclesiásticas e legais, constituíam-se em verdadeiras associações de classe, reservadas, e por trás de suas aparências de fachadas davam curso aos interesses secretos dos seus membros. Respeitadas instituições de solidariedade eram a um só tempo expressão viva da permuta interétnica e ambíguo instrumento de controle social cujos participantes “administravam” criativamente. A confraria sempre obrigou aos seus membros a colaborarem. Jóias de entrada, anuidades, esmolas coletadas e outras formas de renda sempre foram usadas para os mais diversos fins: compra de alforria, realização de festejos, obrigações religiosas, pagamento de missas, caridade, vestuário. No caso da Boa Morte, integrada por mulheres bastante simples e quase todas idosas - entre 50 e 70 anos - os recursos arrecadados em vida buscaram sempre, a concessão de um funeral decente, cujo preparo, face a dupla militância religiosa de suas adeptas, exige rigor e entendimento, além de um certo pecúlio fúnebre.

As Obrigações Corporativas e a Manifestação de Agosto

A historiografia dessas notáveis mulheres cachoeiranas continua a desafiar a inteligência de jovens pesquisadores. Seus rituais secretos ligados ao culto dos orixás também estão a requerer leitura etnográfica que respeite, naturalmente, os limites à manutenção dos segredos, tão importantes na manutenção dessa vertente religiosa. O que tem ressaltado é o aspecto externo do culto referido quase todo ao simbolismo católico e a sua apropriação afro-brasileira. Durante o começo do mês de agosto, uma longa programação pública atrai a Cachoeira gente de todos os lugares, no que Moraes Ribeiro considera o mais representativo documento vivo da religiosidade brasileira, barroca, íbero-africana. Ceias, cortejos, missas, procissões, samba-de-roda colocam cerca de 30 remanescentes da Irmandade, que já possuiu mais de 200, no centro dos acontecimentos da provinciana cidade e, ultimamente, nos principais órgãos noticiosos da capital e tele-jornais. A festa propriamente dita tem um calendário que inclui a confissão dos membros na Igreja Matriz, um cortejo representando o falecimento de Nossa Senhora, uma sentinela, seguida de ceia branca, composta de pão, vinhos e frutos do mar obedecendo a costumes religiosos que interditam o acesso a dendê e carne no dia dedicado a Oxalá, criador do Universo, e procissão do enterro de Nossa Senhora da Boa Morte, onde as irmãs usam trajes de gala. A celebração da assunção de Nossa Senhora da Glória, seguida de procissão, em missa realizada na Matriz dá curso à contagiante alegria dos cachoeiranos que irrompe em plenitude, nas cores, comida e bastante música e dança que se prologam por diversos dias, a depender dos donativos arrecadados e das condições de pecúlio do ano.

Hierarquia e Culto

Como todas as confrarias religiosas baianas, a Irmandade da Boa Morte possui uma estrutura hierárquica interna para gerir a devoção diária e doméstica de seus membros. A direção é composta por quatro irmãs responsáveis pela organização da festa pública de agosto e substituídas anualmente. No topo da administração da vida da Irmandade da Boa Morte está a Juíza Perpétua, posição de maior destaque e atingida por status adquirido, ocupada pela mais idosa adepta. A seguir, situam-se os cargos de Procuradora-Geral, Provedora, Tesoureira e Escrivã, estando a Procuradora à frente das atividades executivas religiosas e profanas. Para serem aceitas as noviças, além de estarem vinculadas a alguma casa de candomblé - geralmente Gêge, Ketu ou Nagô-Batá, na região - e professarem o sincretismo religioso, deverão se submeter a uma iniciação que impõe um estágio preparatório de três anos, conhecido pelo nome de “irmã da bolsa”, aonde é testada a sua vocação.

Uma vez aceita, poderá compor algum cargo de diretoria e a cada três anos ascender na hierarquia da Irmandade. Não é demais lembrar que todas dividem irmanamente as atividades da cozinha, coleta de fundos, organização das ceias cerimoniais, das procissões do cortejo, além dos funerais das adeptas seguindo os preceitos religiosos e uma determinação estatutária tácita. As eleições são realizadas anualmente procedendo-se a apuração dos votos pelo curioso sistema de contagem de grãos de milho e feijão, indicando o primeiro atitude de rejeição e o segundo aceitação. Em que pese as diferenças hierárquicas e os preceitos relativos a cada posição, todas as irmãs estão niveladas como empregadas de Nossa Senhora. Além de irmãs de devoção, são algumas vezes, irmãs de santo e quase sempre “parentes” - os africanos e seus descendentes no Brasil alargaram o conceito de parentela estendendo o vínculo a todos aqueles que são filhos de uma mesma nação. É notável como a ancestralidade africana se reelabora no interior das instituições religiosas baianas e como as irmandades leigas acabam prestando renovado serviço a esse processo de intercurso cultural. É admirável que, a propósito de celebrarem a morte, essas mulheres negras cachoeiranas tenham sobrevivido com tanta majestade e garbo. O mais incrível é que o sistema de crenças tenha absorvido com tamanha funcionalidade e criatividade os valores da cultura dominante, realizando, em nome da vida, complexos processos de apropriação como o evidenciado na descida da própria Nossa Senhora à Irmandade, a cada ciclo de sete anos, para dirigir em pessoa os festejos, investida da figura de Procuradora-Geral, elebrando entre os vivos a relatividade da morte. Tais elementos podem ser constatados tanto na simbologia do vestuário, quanto nas comidas de preceito que evidenciam recorrentes ligações entre este (Aiyê) e o outro mundo (Orun), para utilizar aqui duas expressões já incorporadas à linguagem popular da Bahia. Assim como as confrarias, a devoção a Boa Morte foi muito comum na Bahia Colonial e Imperial. Sempre foi uma devoção popular. Na Igreja de Nossa Senhora do Rosário na Barroquinha ela ganhou expressão e consistência. Aliás, ali era um espaço de notável presença gêge-nagô e as características dos festejos descritos por cronistas como Silva Campos atestam sua semelhança com os praticados ainda hoje em Cachoeira. Deve-se dizer que ali teve origem uma das mais respeitáveis casas de candomblé da Bahia; fundada no século XVIII, a Casa Branca do Engenho Velho da Federação que vem sendo estudada com muito brilhantismo por Renato da Silveira. Devoção popular e mais que isso, racial, na medida em que agregou principalmente negros e mestiços. Suas origens remontam ao Oriente tendo sido adotada por Roma no século VII. Já dois séculos depois a festa da Assunção de Nossa Senhora está disseminada por todo o mundo católico. Trazida de Portugal para o Brasil - onde era conhecida como Nossa senhora de Agosto - ganhou interpretação peculiar, características próprias e por causa disso, a devoção sempre criou atritos com as autoridades da Igreja.

Sua difusão entre a comunidade baiana, entre outras coisas, deveu-se ao fato de que a mediunidade popular característica dos cultos africanos sempre relativizou o problema da morte, na medida em que os adeptos do candomblé acreditam em reencarnações sucessivas. Emprestou, portanto, ao culto originalmente católico elementos do seu sistema de crenças e componentes sócio-históricos da dura realidade escravista que fez do cativeiro sofrível martírio para os que vieram na diáspora. De sorte que a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte passou a ter também um significado social, permitindo a agregação dos escravos, facultando a manutenção de sua religiosidade num ambiente hostil e delimitando um instrumento corporativo de defesa e de valorização do indivíduo, tornando-se, por todas essas razões, um inigualável meio de celebração da vida. Gustavo Falcon (Professor da UFBA e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais)

“PROJETO AIYÊ ORUN” IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

CACHOEIRA - BAHIA - BRASIL

INTRODUÇÃO

A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, realizada todos os anos na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, é uma das mais expressivas e fascinantes manifestações religiosas e culturais brasileiras - uma tradição cuja importância é ressaltada, entre outras coisas, pelo sincretismo que une elementos da religião afro-brasileira, especialmente do Candomblé, com os de uma antiga festividade cristã - a Assunção de Nossa Senhora - cujas origens remontam ao Oriente, passando por Roma no século VII, de onde se disseminou para todo o Ocidente.

Mantida por uma confraria singular - a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, formada exclusivamente por mulheres negras, com idade geralmente acima dos 50 anos, a festa atrai todos os anos, no mês de agosto, para a cidade de Cachoeira, um grande número de visitantes entre estudiosos e turistas de diversas partes do mundo.

Não se trata, entretanto, de um fenômeno meramente turístico, marcado por uma curiosidade folclórica, como se pode pensar à primeira vista. Na realidade, a Festa é a manifestação mais visível de um fenômeno cultural que ainda não foi devidamente estudado e compreendido, ou seja, a própria Irmandade da Boa Morte. De fato, a bibliografia sobre este grupo religioso, que sobrevive a duras penas é escassa.

Sobre a origem da Irmandade, por exemplo, existem apenas algumas especulações como a do historiador e escritor Odorico Tavares, ao sugerir que a devoção teria começado em no início do século XIX, na Igreja da Barroquinha. Segundo ele, teriam sido os jêjes responsáveis pela sua organização e que tinha como objetivo, além da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória levantar fundos para compra de cartas de alforria e dar proteção e encaminhamento aos negros fugidos.

Dessa forma, acredita-se que de um grupo original, mais amplo e organizado teriam saído algumas irmãs, que se deslocaram para Cachoeira por volta do início deste século, recriando naquela cidade a Irmandade da Boa Morte. Outros membros do grupo seriam responsáveis, por sua vez; pela criação de alguns dos principais Terreiros de Candomblés da Bahia o que sugere a evidência de um tronco comum entre a Irmandade e diversas Casas de Santos das nações Ketu e Jêje.

Enfim, seja como manifestação religiosa, política e/ou social, agregando e defendendo os escravos, "facultando a manutenção de sua religiosidade num ambiente hostil delimitando um instrumento corporativo de defesa e de valorização do indivíduo" (Op.cit.), o fato é que a Irmandade da Boa Morte resiste hoje como um dos nossos mais importantes patrimônios culturais, que precisa ser valorizado e preservado.

Foi com esse objetivo que o Projeto "AIYÊ ORUN", nasceu na mesa da sede velha da Irmandade em abril de l992.

I PARTE - PASSADO

1. Lutar pela construção da Sede definitiva da Irmandade em Cachoeira. Antigo sonho da Irmandade.

· Plenamente atingido (através de solicitação do escritor Jorge Amado em artigo publicado pelo jornais Folha de São Paulo e A Tarde 11/02/95). Através da reforma de três casarões em ruínas, realizado e inaugurado pelo Governo do Estado da Bahia em 12/08/95.

2. Promover intercâmbio da Irmandade com outras comunidades negras, com o objetivo de estreitar e fortalecer laços entre o povo de Santo da Bahia.

· Em 11/08/94 - A Irmandade foi recebida em festa nos Terreiros de Candomblés da Cidade do Salvador: Ylê Axe Opô Afonja, Casa Branca, Gantois e Oxumaré. Foi homenageada em missa pela Irmandade do Rosário dos Pretos na Igreja do mesmo nome no Pelourinho em seguida participou de uma exposição de fotografias em sua homenagem na Galeria do SEBRAE, também no Pelourinho.

· Em 22/06/95 visitou os blocos afros: Ylê Aiyê, Filhos de Gandhi, Olodum e o Terreiro de Candomblé Bate Folha. Abriu exposição de obras doadas para o Memorial da Irmandade por artistas plásticos, na Fundação Casa de Jorge Amado.

3. Criação de evento anual em Salvador com objetivo de promoção e arrecadação de recursos para as atividades e manutenção da sede da Irmandade.

· Em 09 de agosto/96 nasceu o ÄIYÊ ORUM O CANTO DA IRMANDADE., realizado na Concha Acústica do Teatro Castro Alves com a participação de Luiz Melodia, Carlinhos Brown, AGBEOKUTA, Virgínia Rodrigues, Jussara Silveira , Carlinhos Cor das Águas e as Irmãs.

II PARTE - FUTURO

Criar: CENTRO DE CULTURA AFRO-BRASILEIRA IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE

1 - O Centro Cultural terá como funções essenciais: 1.1. Constituir-se em um espaço de preservação e divulgação da cultura afro-baiana; 1.2. Situar-se como um centro de educação, na área e extensão e do ensino profissionalizante; 1.3. Ser um equipamento cultural da Cidade de Cachoeira e do Recôncavo, aberto à divulgação das manifestações regionais;

Setores e Atividades

1. Memorial -Espaço básico de exposições de:

  • Roupas, objetos e fotos da Irmandade, peças de candomblés e arte popular de Cachoeira e Recôncavo;

2. Criação de uma biblioteca e videoteca.

  • Com objetivo de desenvolver junto a crianças e adolescentes o habito de ler;
  • Com acervo prioritariamente voltada para educação e cultura afro-brasileira;

3. Salas de aula para Cursos de Introdução a:

  • Yorubá
  • História de Cachoeira
  • Cerâmica ornamental, utilitária :
  • Brinquedos populares
  • Pintura popular
  • Artesanato religioso
  • Corte e costura ( rendas, bordados, pintura em tecido e pano da costa):

4. Criação do coral infanto-juvenil com aproximadamente 30 componentes, cujo repertório será composto música de louvação aos orixás, ladainhas e sambas-de-roda. 5. Promoção de encontros, seminários, conferências e debates cujos temas, sempre de interesse comum e indicado pela irmandade e/ou comunidade. 6. Home Page 7. Produção de um CD. de samba-de-roda do repertório das irmãs e cantado por elas. 8. Lançamento de uma revista semestral "AIYÊ ORUN". 9. Pesquisa sobre a Irmandade 10. Lançamento anual de um livro.

  • Sendo o primeiro o resultado da pesquisa sobre a Irmandade Nesse sentido, o convidamos para participar da materialização do sonho de fazer da Casa da Irmandade um organismo de preservação e difusão da cultura afro-brasileira.

Adenor Gondim Salvador/Cachoeira , 09 de maio de 1997

WIKIPÉDIA - A enciclopédia livre

http://pt.wikipedia.org/wiki/Irmandade_da_Boa_Morte

Projeto Axé Capoeira faz primeiro batizado





ETNIA



Cilene Brito

Ginga e molejo eles mostram que têm de sobra. A prática da capoeira não é mais vista como lazer, mas como um sonho de profissionalização para 65 crianças e adolescentes do Projeto Axé. Ontem, eles participaram do primeiro batizado do Projeto Axé Capoeira, numa cerimônia realizada no Teatro Gregório de Mattos. A cerimônia, marcada por apresentações de roda de capoeira, contou com a participação de importantes representantes da capoeira de Salvador, como os mestres Dinho, Bamba, Lua, Bobó e Romeu.
O batizado marcou o ingresso dos meninos e meninas do projeto no universo da capoeira como profissionalização. Eles foram premiados com faixas que representam três níveis de aperfeiçoamento da capoeira. Para a profissionalização do curso, é necessário cinco níveis. A iniciativa é uma parceria entre a operadora de telefonia celular Tim, por meio do Programa Estadual de Incentivo à Cultura (Faz Cultura).
“A capoeira não é apenas uma dança, mas, sobretudo, um retorno às origens culturais para que os meninos de etnia negra descubram a sua identidade. Com a prática da capoeira, eles poderão aprender a identificar suas raízes”, disse o presidente do projeto Axé, Cesare de Florio La Rocca. Segundo ele, a capoeira foi inserida no projeto há 11 anos, mas apenas como atividade transversal. A ação tem como meta resgatar e preservar a capoeira com a oferta de cursos para crianças e adolescentes em situação de risco. “A partir de agora, eles passarão a praticar uma atividade específica, com intuito de profissionalização. Esta formação também representa uma oportunidade de fonte de renda”, disse.
Há dois anos praticando capoeira no Projeto Axé, Jones Jorge Oliveira Nascimento, 15 anos, sonha alto. “Quero ser um professor”, diz. O garoto, que recebeu a faixa de primeiro nível, se orgulha em dizer que já realizou muitas apresentações públicas, inclusive para TV. “Eu acho a capoeira maravilhosa. O meu sonho é chegar até o último nível e me tornar um professor. Quero levar a arte da capoeira para todo o mundo”, diz. Ederson Santos Nunes, 19 anos, já alcançou vôos mais altos. Há nove anos praticando a capoeira no projeto, ele recebeu ontem a faixa de terceiro nível. “Estou muito feliz e ansioso. Quero me tornar um professor”, contou o rapaz, que já fez apresentações em outros estados.
Um dos professores do projeto, mestre René diz que o objetivo do curso é valorizar a tradição africana através da música e da dança. Ele explica que durante o curso os alunos aprendem duas vertentes de capoeira: a Angola, criada pelos escravos brasileiros, com o intuito de libertação e igualdade, e a Regional, desenvolvida por mestre Bimba, na Bahia. Para ele, o curso de capoeira está dando oportunidade para a descoberta de muitos talentos. “Os nossos alunos já nascem com a capoeira no sangue. Eles têm ginga e estão agregando o aperfeiçoamento dos movimentos. O curso valoriza as raízes e a cultura africana”, diz.


Aqui Salvador, Correio da Bahia, 26.08.2006 - www.correiodabahia.com.br

Friday, August 25, 2006

Netos de Chico Buarque sofrem discriminacao racial



Nas lojas o novo trio de DVDs da série (de 12) que biografa Chico Buarque de Holanda. No segundo Dvd publicado
Chico faz uma denúncia grave : seus netos, filhos de Carlinhos Brown
e de sua filha Helena , sofreram discriminação racial no condomínio
onde moram, na Zona Sul do Rio de Janeiro. “É gente que pensa que é
Branca. Nós não somos brancos”
, protesta Chico Buarque na gravação.
(Supersonicas. T.S.)

Enquanto isso o "mulato nato do litoral" Caetano Veloso assina o manifesto contra as cotas e as ações afirmativas.
E o jornalista d´O Globo Ali Kamel lança o livro
“Nós Não Somos Racistas”...

E o barraco continua rolando em cima da populacao
negra, em busca de seus direitos civis e humanos,
na sociedade racista brasileira.

Todo dia morrem quantos de nós mesmo,
seu Ali Kamel?

Durma-se com o barulho desses,
no meu "Brasil, Brasileiro..."

Ras Adauto

Universidade Técnica de Darmstadt, Alemanha, realiza pesquisa sobre as Comunidades Quilombolas de Alcântara, estado do Maranhão.


Universidade Técnica de Darmstadt, Alemanha, realiza pesquisa sobre as Comunidades Quilombolas de Alcântara, estado do Maranhão.


O Departamento PAR –Planejar e Construír no Exterior - Faculdade de Arquitetura, da Universidade Técnica de Darmstadt, Alemanha, apresentaram no dia 02 de Maio de 2006, o video-documentário "A Voz da Mulher Quilombola, Alcântara, Maranhão" realizado pela pesquisadora Celeste Vargas.

O video-documentário faz parte da pesquisa sobre Gênero "Gender - Siedlungsentwicklung in den Quilombos, Brasiliens".

A pesquisa examina a situação sócio-cultural e ecônomica das mulheres quilombolas em três contextos distintos: a vida nas comunidades tradicionais, nas agrovilas e no centro urbano do município de Alcântara, estado do Maranhão.

Pesquisa e filme foram concebidos pela Arquiteta Urbanista Celeste Vargas que contou com a colaboração da geógrafa Julia Richter e com a orientação científica do Professor Dr. Kosta Mathey da Universidade de Darmstadt .

Os 46 minutos e 29 segundos do video-documentário mostram a luta das comunidades pela sobrevivência e melhores condições de vida, além da luta pela preservação dos seus costumes e tradições.

As mulheres demonstram através do seu dia-a dia, que são elas as protagonistas incansáveis de uma jornada que dura séculos de história no Brasil. Elas são a voz das suas próprias histórias.

As filmagens foram realizadas durante seis semanas, entre os meses de Julho e Setembro de 2005, no município de Alcântara, estado do Maranhão.

Grande parte da documentação realizada, foi possível através do apoio recebido pelo MABE (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial) entidade local que surgiu em 1999 como representante responsável pela defesa dos direitos das comunidades que foram deslocadas em 1986. Face a esse contexto, o MABE permanece lutando contra os possíveis deslocamentos previstos pelo projeto de expansão da AEB (Agência Espacial Brasileira) e pela titulação das terras das comunidades quilombolas.

Participaram da documentação as(os) moradoras(es) das comunidades de Arenhengaua, Itapera, Santa Maria, Canelatiua, Itamatatiua, Ilha do Cajual, Samucangaua, Mamuna e as(os) moradoras(es) das agrovilas Espera, Peptal, Só-Assim e Marudá.

Em Alcântara foram entrevistadas(os) além das moradoras(es) da cidade e do Bairro Buraco Fundo, representantes do Momtra (Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara).

Paralelamente à apresentação do video-documentário ocorreu no dia 03 de Maio de 2006 na Universidade Técnica de Darmstadt, abertura da exposição fotográfica "Comunidades Quilombolas - Cultura e Identidade, onde o fotógrafo Everaldo Luis Silva apresentou imagens do Maranhão mostrando aspectos do patrimônio arquitetônico da cidade de Alcântara e também um ensaio do Tambor de Criola, manifestação cultural tradicional das comunidades desta região. Completaram a mostra, retratos da comunidade dos Arturos(Contagem, Mg).

A exposição ficará exposta na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Darmstadt até 17.05.06.

Celeste Vargas, Arquiteta Urbanista
celvargas@aol.com
www.clickcor.de
PAR Technische Universität
El-Lissitzky Strasse 1
D-64287 DARMSTADT
Tel +49 6151 16363
par@par.tu-darmstadt.de

Fonte: http://www.brazine.de/artikel.asp?rubrik=kultur&artikel=
{26D6ACFC-9431-4038-8F45-9D51C4A7CF51}

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Quilombolas de Alcântara

Quilombolas de Alcântara no Maranhão têm seus direitos atropelados

21 de agosto de 2006

Dona Margarida Araújo, Caixeira-Mor da Festa do Divino Espírito Santo de Alcântara, faleceu no último dia 21 de julho, na agrovila Cajueiro, naquele município, sem que os seus direitos, garantidos pela Constituição da República, fossem respeitados. Removida à força do seu lugar de origem, no antigo povoado de mesmo nome da agrovila, no início da década de 80 do século passado, em decorrência da instalação do CLA – Centro de Lançamento de Alcântara, ela declarou no vídeo do cineasta Murilo Santos, “Terra de Quilombos – Uma Dívida Histórica”, que “a minha vontade é que eu não tivesse saído de lá...tinha um dia de eu sair de lá: pela minha morte”. Existe um laudo antropológico, feito pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, atestando que quase a totalidade do município de Alcântara é território étnico, sendo a área reconhecida pela Fundação Palmares. No entanto, o governo condiciona a titulação das terras a mais um retalhamento do território dos quilombolas, em benefício dos interesses da AEB - Agência Espacial Brasileira.

Em meados de julho, entre os dias 14 e 15, em Alcântara, houve reunião do GEI-Alcântara (Grupo Executivo Inter-Ministerial), onde o governo federal, por meio do representante da Casa Civil, da Presidência da República, Dr. Celso, afirmou com todas as letras que o governo vai tirar o necessário do território quilombola para implantar novos sítios(leia-se nova desapropriação) e “o que restar vai ser titulado para os quilombolas de Alcântara”. Por sua vez, o representante do MDA – Ministério de Desenvolvimento Agrário, informou para quem quisesse ouvir que “a proposta da AEB é a proposta do governo”. Afinal, parece que existem dois pesos e duas medidas, pois ao mesmo tempo em que o governo admite a existência do território étnico, ignora os direitos dos quilombolas, previstos na Constituição.

O GEI foi criado pelo governo federal em 2004, e é coordenado pela Casa Civil da Presidência da República. Composto por 23 ministérios, sua missão seria articular, viabilizar e monitorar as ações cruciais para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, sobretudo por conta da enorme dívida social provocada aos moradores pela instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, que trouxe aos quilombolas prejuízos incalculáveis em decorrência do deslocamento dos mesmos dos seus povoados de origem para as agrovilas. A área dos povoados anteriormente ocupava mais da metade do município, hoje sob controle do CLA. Alcântara possui 22 mil habitantes. Desse total, 12 mil são quilombolas.

Sérvulo Borges, Coordenador do MABE - Movimento dos Atingidos pela Base Espacial, declara que “a proposta da AEB é a mesma de sempre, com pequenas modificações; não existe a discussão em torno das compensações aos quilombolas por conta do deslocamento, o que existe é a exclusão dos territórios, com diminuição dos mesmos e prejuízo para a sustentabilidade das comunidades. Nós discordamos dessa situação, e não aceitamos as propostas, pois as mesmas não são claras. A comunidade rejeitou as propostas e pediu 120 dias de prazo para avaliar a situação e, ao final desse tempo, discutiremos novamente”.

Dona Margarida é mais uma quilombola que parte sem ter tido o direito, em vida, ao título da sua terra, da sua casa, como tantos outros que partiram, e da grande maioria que continua sendo desrespeitada nos seus direitos elementares de cidadania. Reza a Constituição da República Federativa do Brasil, no seu artigo 68 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos”. No entanto, a AEB atropela a Constituição e já está com os trâmites legais para a criação de um atracadouro bem próximo da sede de Alcântara, num lugar conhecido como Ponta das Pedras, uma área de proteção ambiental, ponto de pouso de aves migratórias e de ocorrência de peixes-boi e de botos.

Nas agrovilas Espera e Cajueiro, onde vivia dona Margarida, existem pelo menos 11(onze casas) e diversos lotes de trabalho para o Atracadouro de Cargas Pesadas, planejado para servir aos novos sítios e ao CLA. Por trás de tudo isso, existem interesses políticos e econômicos, pois o Ferry Boat que será construído para o transporte de cargas terá capacidade para transportar 200 veículos (inclua-se aí ogivas e estruturas de foguetes). O projeto atropela estudos de impacto ambiental contrários à instalação do malfadado atracadouro e desrespeita os direitos dos quilombolas garantidos, pelo menos em tese, pela Constituição da República.


FONTE: Jornal Pequeno em 04/08/2006

Há espaço para ações afirmativas no país?

OTAVIANO HELENE*

Folha de São Paulo - TENDÊNCIAS/DEBATES - São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 2006

AÇÕES AFIRMATIVAS têm sido adotadas por diversos países e em vários setores, como no emprego, na educação e na moradia.

Essas ações são dirigidas a diferentes grupos (origem nacional, gênero, etnia, profissão, religião etc.) e têm por objetivo, segundo seus defensores, reduzir barreiras sociais e combater desigualdades. Argumentos contra ações afirmativas incluem o favorecimento de subgrupos já favorecidos (como negros ricos, nos EUA), a interferência na identidade cultural (como a incorporação dos maoris da Nova Zelândia à cultura européia por meio do sistema educacional) ou a pouca eficácia, uma vez que beneficia alguns enquanto prejudica outros, deixando o todo inalterado.

A retração da educação superior pública no Brasil faz com que o impacto prático de qualquer política de cotas venha a ser imperceptível

No Brasil, ações afirmativas têm surgido principalmente na forma de cotas em empregos públicos e de acesso preferencial ao ensino público superior. Essas políticas têm recebido críticas e apoios incisivos, especialmente no que se refere a cotas étnicas. Entretanto, quais serão as conseqüências práticas dessas ações? No que segue, será avaliado o impacto da política de cotas em instituições federais de educação superior para egressos de escolas públicas.

Um primeiro aspecto é quanto à pouca abrangência de tais ações. Cerca de 1,6 milhão de jovens completam, a cada ano, o ensino médio em instituições públicas no país. Como o número de vagas nos vestibulares das instituições federais de ensino superior é pouco superior a cem mil, a metade delas (as destinadas às cotas) atenderia apenas cerca de 3% dos potenciais candidatos. A situação no Estado de São Paulo é ainda muito pior: cerca de 450 mil conclusões por ano em escolas públicas para um total de vagas federais inferior a 2.000, metade delas correspondendo a 0,2% dos concluintes!

Um segundo aspecto é quanto ao possível perfil dos beneficiados. Apesar da falência do ensino público, há algumas exceções. Uma delas é formada pelo conjunto de escolas federais (Cefets, colégios de aplicação, escolas militares), de onde vem cerca de 1% dos concluintes do ensino médio.

Outro grupo, também com cerca de 1% dos concluintes, é formado pelas poucas escolas estaduais de boa qualidade, a quase totalidade delas escolas técnicas ou ligadas a faculdades de educação. Essas escolas oferecem melhores condições de trabalho para seus docentes e de aprendizado para seus estudantes do que aquelas oferecidas pelas demais escolas públicas.

Muitas delas, ainda, selecionam seus alunos por meio de provas de ingresso. Ou seja, são escolas diferenciadas e que trabalham com estudantes também diferenciados. O desempenho dos egressos dessas escolas nos vestibulares é bastante elevado, em muitos casos superior ao de seus colegas de boas escolas privadas. Como parte das cotas será ocupada por egressos dessas escolas, o número de novos beneficiados será bem menor, na média nacional, que os 3% estimados acima e praticamente nulo em São Paulo.

A primeira conclusão, portanto, é que a retração da educação superior pública no Brasil faz com que o impacto prático de qualquer política de cotas venha a ser imperceptível.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito às demais condições em que a política de cotas é adotada. Nos diversos países, políticas de cotas foram adotadas juntamente com a retirada das barreiras que as motivaram. Por exemplo, na Índia, as cotas que beneficiam as castas desfavorecidas são adotadas por um Estado laico, que não reconhece a classificação religiosa; nos EUA e na África do Sul, as ações afirmativas foram implementadas juntamente com a eliminação das leis racistas. Entretanto, no Brasil, essas ações são adotadas enquanto as condições que as motivaram são mantidas: uma grande maioria das escolas estaduais e municipais de ensino fundamental e médio de péssima qualidade e uma concentração de renda que condena enormes contingentes populacionais a uma vida degradante, impossibilitando qualquer ação, material ou cultural, que permita enfrentar os problemas criados por uma escola pública falida.

Adotar ações afirmativas e preservar as barreiras que as motivaram parece esquizofrenia. Embora os argumentos apresentados tenham se restringido a cotas para estudantes egressos de escolas públicas, eles podem ser estendidos aos vários subgrupos potencialmente beneficiados: em qualquer caso, a quantidade de beneficiados seria menor do que 3% do contingente total, considerando que parte dos estudantes ingressaria no ensino público superior independentemente das cotas.

Finalmente, é necessário observar que, se mantida a baixa qualidade do sistema público de educação básica, a política de cotas poderá ter um efeito perverso: os estudantes não inseridos não serão mais considerados vítimas de um sistema falido, mas, sim, os responsáveis pela interrupção dos próprios estudos, pois chances tiveram: a velha prática de responsabilizar a vítima.

*OTAVIANO HELENE , 56, doutor em física, é professor do Instituto de Física da USP (Universidade de São Paulo) e foi presidente da Adusp (Associação de Docentes da USP) e do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

fonte e íntegra:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2308200609.htm - acesso exclusivo para assinantes UOL.

veja ainda:
A falácia progressista e as cotas raciais
Filipe Compante e Paulo Daflon Barrozo
18/08/2006 – O Globo Online

acesso: http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2006/08/17/285319287.asp

recebido de Julvan Moreira de Oliveira - julvan@usp.br

Tuesday, August 22, 2006

História e ritual da nação jeje na Bahia



A Fundação Gregório de Mattos
e o Centro de Estudos Afro Orientais
da Universidade Federal da Bahia
convidam para o lançamento do livro

„A Formação do Candomblé – História e ritual
da nação jeje na Bahia”,

do autor Luís Nicolau Pares.

Local: Casa do Benin (Rua Padre Agostinho, 17 - Pelourinho)
Data: 25 de agosto de 1006
Horário: 18h

Sunday, August 20, 2006

Racismo á brasileira: Trote


Trote

É início de segundo semestre nas faculdades e, mais uma vez, época de trote. Vocês já devem ter visto a cena: moças e rapazes emplastrados de tinta mendigando trocado pela cidade para pagar cervejada para os veteranos.

Esta semana, na Visconde de Pirajá, observei um grupo de calouros em ação. Observei por muito tempo, pois o trânsito estava tão ruim que o ônibus andava no mesmo ritmo deles. Lá pelas tantas me pego com o seguinte pensamento: "só assim a gente vê branco mendigando no Rio de Janeiro". Fiquei assustado com minha própria conclusão, apesar de ela ser um tanto óbvia. E mais: reparei que as pessoas reagiam com muito mais bom humor e eram muito mais generosas com as "doações" para a cervejada dos calouros e veteranos que costumam ser com mendigos e menores de rua. Não as culpo. Os calouros, com caras e corpos pintados, não parecem oferecer qualquer ameaça. Enquanto um menor de rua, bem, a gente nunca sabe.

No fim das contas, porém, a visão em Ipanema era: jovens mendigos negros eram ignorados pelos transeuntes enquanto jovens universitários brancos arrecadavam moedas e sorrisos para bancar uma chopada.

No meio da discussão sobre as cotas nas universidades... Sei lá. Não tenho opinião formada sobre as cotas. Há um argumento contra que me parece muito forte: os resultados tendem a ser inócuos ou até mesmo traiçoeiros sem uma melhoria pesada no ensino fundamental e no médio. Mas quando os do contra começam a dizer que não há racismo no Brasil, ou que as cotas podem criar um ódio racial que eles crêem não existir... Então, tá.



J.X. Blog - http://oglobo.globo.com/blogs/ximenes/

Saturday, August 19, 2006

Estudantes saem às ruas para defender cotas



MANIFESTAÇÃO



Perla Ribeiro

Pneus queimados, faixas e cartazes com reivindicações, tráfego interditado e confusão. Centenas de estudantes ganharam às ruas, ontem à tarde, para pressionar o governo federal a votar de imediato os projetos de leis que estabelecem as cotas raciais e o Estatuto da Igualdade Racial. A manifestação foi planejada durante a II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), quando instituíram o 18 de agosto como o Dia Nacional em Defesa das Cotas Raciais. O ato estava previsto para se repetir em vários estados.
O grupo se reuniu inicialmente na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba) por volta das 13h e, às 15h, saíram em protesto, seguindo pelo Corredor da Vitória até a Reitoria da Ufba, no Canela. O ponto alto da manifestação foi quando queimaram 12 pneus em frente a Reitoria. A Polícia Militar foi acionada e tentou prender um dos estudantes.
A Superintendência de Engenharia de Tráfego (SET) teve que interromper a via por quase uma hora, gerando um grande congestionamento na região. Segundo o coordenador pedagógico do Atitude Quilombola, que integra o Comitê Organizado na Luta pela Aprovação das Cotas, Valter Altino, a manifestação foi vista de forma bem positiva. “Viemos às ruas lutar pela aprovação das cotas com recorte social e a aprovação do estatuto. Temos que pressionar a sociedade para que o governo Lula não recue da iniciativa de aprovar os projetos de ações afirmativas”, disse.
Segundo os estudantes, o protesto também é uma resposta às elites intelectuais que encabeçaram uma abaixo-assinado contra a política de cotas. Ao todo, foram cerca de 400 estudantes, fazendo apitaço e bradando frases de ordem relativas à instituição das políticas afirmativas. A manifestação contou com a participação de diversos movimentos, dentre eles o Movimento Negro Unificado (MNU), União de Negros Pela Igualdade (Unegro), Coletivo de Entidades Negras (CEN), entre outros. Para o estudante Uilton Campos, a luta não deve parar. Ele informou que outras manifestações voltarão a ser realizadas com o mesmo fim.


Aqui Salvador, Correio da Bahia, 19.08.2006 - www.correiodabahia.com.br

Friday, August 18, 2006

Veja bem!!!!





Brasil Veja estimula ódio e preconceitos

Altamiro Borges
La Insignia. Brasil, agosto de 2006.


Na noite deste sábado, no caixa de um supermercado na região central de São Paulo, uma típica senhora da alta classe média, vestida no pior estilo da perua decadente, pega a última edição da revista Veja. Na capa, a foto de uma mulher negra, título de eleitor na mão, e a manchete: "Ela pode decidir a eleição". No texto-legenda, a descrição: "Nordestina, 27 anos, educação média, 450 reais por mês, Gilmara Cerqueira retrata o eleitor que será o fiel da balança em outubro". A dondoca burguesa, indignada, tenta puxar conversa, em plena militância eleitoral. "Que absurdo. Onde já se viu essa gente pobre decidir o destino do país. Eu odeio o Lula. Deus nos livre dele".
O episódio, por mais repugnante que possa parecer, é verídico. Dá ânsia de vomito, mas é real, infelizmente. Ele revela o grau exacerbado de preconceito da burguesia e de parcelas da "classe mérdia" contra o presidente Lula e por sua opção, mesmo tímida, de priorizar os investimentos nas áreas carentes. A extremada reação da madame deve ter sido exatamente a orquestrada pelos conspiradores da Editora Abril, asseclas do golpista-mor Roberto Civita. O objetivo desta e de outras edições da revista Veja é o de criar um clima de ódio entre as camadas médias contra o atual governo. A publicação não visa informar, mas sim manipular e gerar preconceitos. E a perua nem havia lido a revista - bastou a capa para liberar seus piores instintos de classe. As páginas internas destilam veneno; são todas editorializadas e não informativas e imparciais. Num texto leviano, por exemplo, esta edição novamente vincula os petistas ao crime organizado. Sem provas, afirma: "Fica evidente a simpatia do PCC pelo PT, bem como a aversão da organização pelo PSDB" - o que mereceria um imediato processo judicial do partido contra a Editora Abril. Noutro artigo, não vacila em citar a China - seu eterno diabo comunista - para atacar o "tímido" crescimento da economia brasileira, por culpa do "populismo e do corporativismo" do governo Lula, que "criam um ambiente avesso à competição e a inovação". Haja descaramento! Panfleto da direita Mas é na reportagem de capa, que ocupa dez páginas da edição, que a Veja escancara todo o seu preconceito e ódio de classe. O primeiro artigo tenta desqualificar os 34 milhões de eleitores do Nordeste, com pouca escolaridade (93% até o nível médio) e baixa renda (71% ganham até R$ 700). De forma marota, acusa essa "gente pobre" de ser vítima do assistencialismo. "[Gilmara] não tem dinheiro para comprar um par de óculos para o filho caçula, mas está satisfeita com a vida - e com Lula. 'Ele é um homem bom', diz ela, que, como outros 22 milhões de nordestinos, recebe o Bolsa Família - a mais espetacular alavanca eleitoral de Lula no Nordeste". Já o segundo texto reforça o dogma neoliberal de que os investimentos públicos em programas sociais equivalem à "gastança" e são ineficientes economicamente. A manipulação é descarada. O próprio articulista constatou que várias cidades e regiões do Nordeste tiveram suas economias dinamizadas devido aos programas sociais do governo. As vendas no varejo cresceram 17,7% - bem acima dos 7% na região Sudeste - e "os nordestinos passaram a comprar mais alimentos perecíveis, material de limpeza e higiene". Apesar destes fatos irretocáveis, o pau-mandado dos Civitas aposta no desastre desta política e ainda tenta estimular a discriminação regional: "O Nordeste enfrenta uma bolha de crescimento inflada pelo aumento do consumo, que, por sua vez, é lastreado em grande parte no dinheiro que os brasileiros que trabalham e pagam impostos carreiam para a região em programas assistenciais". Haja rancor pequeno-burguês! O último texto é o mais raivoso de todos; já verte veneno no título: "Reféns do assistencialismo". Em poucas linhas, ele bate três vezes na tecla de que os programas sociais do governo "distribuem dinheiro dos brasileiros que trabalham e pagam impostos a 44 milhões de outros brasileiros" - os nordestinos. A repetição não é por mera incompetência. Visa exatamente contaminar a madame e outros individualistas empedernidos das camadas médias. O medo da democracia O lamentável episódio deste sábado, que causou irritação e reforçou a convicção de que a classe "mérdia" é egoísta e burra, corrobora uma tese defendida pelo historiador Augusto Buonicore, num excelente artigo na revista Debate Sindical. Conforme ele demonstra, as classes dominantes fizeram de tudo para evitar a ampliação dos espaços democráticos. Sempre temeram o sufrágio universal, exatamente por temerem o voto da "gente pobre" - da mulher, nordestina, negra, baixa escolaridade e poucas posses. No caso das mulheres, elas só conquistaram esse direito em 1918, na Inglaterra; em 1920, nos EUA; em 1934, no Brasil; e em 1948, na França. Já os negros dos EUA, exemplo de democracia para a Editora Abril, só adquiriram direitos políticos nos anos 60. Foi John Locke, principal teórico liberal da revolução inglesa, quem propôs a exclusão dos não-proprietários do direito ao voto: "Todo governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade". Já James Madison, o quarto presidente dos EUA, confessou: "Se as eleições forem abertas para todas as classes do povo, a propriedade não será mais segura". E até John Stuart Mill, um liberal progressista, tentou desfigurar o sufrágio universal. "Um empregador é mais inteligente do que um operário por ser necessário que ele trabalhe com o cérebro e não só com os músculos. Nestas condições, pode-se atribuir dois ou três votos a toda pessoa que exerce uma dessas funções de maior relevo", pregou, ao defender o voto diferenciado entre as classes. A conquista destes direitos demandou dos trabalhadores muitas revoltas, manifestações, greves e revoluções. "A consigna 'um homem um voto', que se tornou paradigma dos estados modernos, soava como algo subversivo aos liberais burgueses. A própria palavra democracia era explosiva. Assim, contraditoriamente, o que conhecemos como democracia burguesa foi uma conquista da luta dos trabalhadores contra a própria burguesia que tentava excluí-los da vida pública", conclui Buonicore. Apesar dos limites e seduções da democracia burguesa, ela permitiu que um operário grevista, no Brasil, e um líder camponês, na Bolívia, chegassem à Presidência da República. Atentado à Constituição É isso que causa tanta ojeriza, preconceito e ódio de classe à revista Veja e às madames-peruas. Por mais que o governo Lula tenha cedido - e cedeu demais ao "deus-mercado" -, as elites não o toleram. Não aceitam que um novo bloco de forças, oriundo das camadas populares e das lutas sociais, tenha chegado ao governo central. Não aceitam que o governo, mesmo que timidamente, inverta algumas prioridades e invista em programas sociais, na valorização do salário mínimo, na ampliação do crédito popular, na agricultura familiar. Elas têm nojo desta "gente pobre" e do que Lula simboliza. A maioria pobre é para ser uma fiel serviçal e não quem "decide a eleição". Numa democracia mais avançada, a Editora Abril seria processada por estimular o preconceito e a discriminação regional, que ferem a Constituição; já a dondoca seria presa por racismo! Apesar dos limites da "democracia dos proprietários", seria saudável para a democracia e para o próprio jornalismo que pipocassem centenas de processos na Justiça contra esta asquerosa publicação! É preciso ter a dignidade e ousadia do jornaleiro Fabio Marinho, dono de uma movimentada banca em Porto Alegre, que se recusou a vender esta revista! A Veja está passando de todos os limites e merece o forte repúdio da sociedade.

(*) Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro "As encruzilhadas do sindicalismo" (Editora Anita Garibaldi).