Sunday, August 27, 2006

Direito à educação

Direito à educação

Anderson, Rachel, Paulo Henrique, Leandro e Gabriel fazem parte da primeira geração de estudantes a ingressar no ensino público superior pelo sistema de cotas para negros e alunos da rede pública. A maioria se forma no começo de 2007

Rio - No perverso gargalo da educação brasileira, estudantes de origem humilde que chegam aos bancos universitários são sobreviventes no elitizado mundo acadêmico. Enquanto o País discute, no Congresso, projeto de lei que institui 50% das vagas nas universidades federais para alunos da rede pública, no Rio a Uerj e a Uenf se preparam para dar o diploma aos primeiros cotistas brasileiros, que se formam em fevereiro.

Em meio a debates acalorados com direito a manifestos pró e contra as cotas, uma situação muito grave vem preocupando os reitores: as vagas disponíveis para cotistas não estão sendo preenchidas. Em 2003, primeiro ano de implantação do programa, o sistema atraiu 8.533 candidatos. Este ano, foram 3.620 estudantes. Em quatro anos, a queda chega a 57,58%.

Não bastasse a procura cada vez menor, também vem caindo o total de matrículas. No primeiro ano do programa, foram preenchidas 3.081 vagas na Uerj e Uenf. Em 2005, apenas 1.753 lugares foram ocupados. “As que não são preenchidas são transferidas para alunos que entraram sem cota”, diz a sub-reitora de Graduação da Uerj, Raquel Villar.

OCIOSIDADE DE 60%

O quadro chama a atenção do pró-reitor de graduação da Uenf, Almy Cordeiro de Carvalho. “Estamos tendo ociosidade de vagas na ordem de 60%. O aluno carente não está batendo na porta da universidade. Precisamos reverter isso”, afirma. Segundo ele, três razões explicam em parte o porquê da desistência sem tentar ao menos o vestibular: dificuldade em preencher os requisitos para concorrer; a prova final exige acerto de 20% das questões (antes bastava não zerar); e falta de programas de permanência — a bolsa de R$ 190 é no primeiro ano.

“Gostaríamos de pagar nos quatro anos do curso, mas não há recursos”, lamenta Cláudio de Carvalho Silveira, coordenador-adjunto do Proiniciar (Programa de Iniciação Acadêmica). Também faltam alojamento e bandejão. “As cotas estão aí como reparação de 388 anos de escravidão e mais 100 de exclusão. Mas é preciso que eles tenham condições de se manter na instituição”, defende Frei David, diretor da Rede de Pré-vestibulares Educafro, que mantém 255 cursinhos comunitários no Rio e em São Paulo.

A Uenf acaba de divulgar primeiro diagnóstico sobre eficácia das cotas. O estudo mostra que a maior parte dos universitários negros de Campos estuda na rede privada. A pesquisa ouviu 1.111 estudantes negros e constatou que a maioria cursou escolas públicas, mas não foi aprovada na Uenf.

Em 2004, entraram 60 negros por cotas e este ano, 15. “As particulares estão conseguindo incluir negros com bolsas e as públicas, não”, avalia a autora da pesquisa, Shirlena Campos, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Uenf.

AO FIM DO CURSO, DIPLOMA NA MÃO E HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO

Dos 3 mil estudantes cotistas aprovados no Vestibular 2003 da Uerj e Uenf, mil ficaram pelo caminho. Quem resistiu leva com o diploma — em fevereiro do ano que vem — histórias de superação, preconceito e carências. São estudantes que driblam o destino e não se contentam com a proeza de entrar na universidade pública, que recebe apenas 2% dos jovens brasileiros, com idade entre 18 e 24 anos. Depois que entram, ainda conseguem superar os sem-cota.

É o que mostra estudo sobre o desempenho acadêmico de estudantes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em 2004. O acompanhamento revela que os cotistas dos cursos de Engenharia Civil, Agronomia e Medicina Veterinária obtiveram notas mais altas do que os alunos que entraram da forma tradicional. O que mais chama a atenção é que o rendimento dos cotistas foi melhorando ao longo da faculdade. Nos cursos citados, as notas obtidas no vestibular eram inferiores ao dos alunos não-cotistas. “É a prova de que vestibular não mede a capacidade de ninguém”, afirma Renato Ferreira, do Programa Políticas da Cor, da Uerj.

Pesquisa inédita do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj avaliou “Quatro Anos de Políticas de Cotas no Brasil”, na visão de 558 professores de instituições que adotaram o sistema — UnB (Brasília), Ufal (Alagoas), Uneb (Bahia) e Uerj (Rio). O estudo derruba um dos principais mitos contra o sistema. Para 79,6% dos professores, o nível acadêmico ficou igual após a implantação das cotas.

‘GUERRILHEIROS’

Entre os que deram aula para alunos cotistas, 74% avaliam como bom ou muito bom o desempenho deles. “Alunos que têm pais analfabetos sabem o peso do mandato que carregam. São os primeiros de uma geração a ter diploma nas mãos”, explica Pablo Gentili, um dos coordenadores da pesquisa.

Coordenador do programa Jovens Talentos da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia, Cláudio Cerqueira acredita que o bom resultado se deve à dedicação exclusiva dos professores da Uenf. Todos têm doutorado e fazem pesquisa. “Cotista é como guerrilheiro. Não desiste. Quando está em desvantagem, some, tranca matrícula, mas não larga a luta”, compara.

O Dia Online, 27.08.2006 - http://odia.terra.com.br/rio/htm/geral_53814.asp

1 comment:

medeiros said...

Essa matéria é fantástica. Informa a primeira pesquisa sobre o resultado nulo das cotas na universidade. Parabéns!