Sacerdotisa por inteiro
‘Mãe Menininha do Gantois – Uma biografia’ tem o mérito de reconstituir as várias facetas da religiosa
Ana Cristina Pereira
A fama alcançada pela ialorixá Mãe Menininha, ainda em vida transformada em mito, criou quase um apagamento da pessoa Maria Escolástica da Conceição Nazareth. É difícil imaginar, por exemplo, que Menininha não quisesse assumir o posto de líder do Gantois, terreiro que comandou com firmeza e devoção por longos 64 anos. Ou que gostasse de ficar vendo tevê, era uma festeira convicta e amante do futebol. Essas e outras características da religiosa recheiam o livro Mãe Menininha do Gantois – Uma biografia, de autoria de Cida Nóbrega e Regina Echeverria, publicação conjunta das editoras Corrupio e Ediouro.
Primeira biografia de Mãe Menininha (1894-1986), o livro tem o principal mérito de aproximar as várias facetas da religiosa, reconstituídas pelas pessoas que estiveram mais próximas dela. Familiares, filhos-de-santo e personalidades, tendo à frente a filha-de-santo e de sangue Carmen, atual ialorixá do terreiro, que prestou uma espécie de consultoria ao projeto. “No total, ouvimos 63 pessoas, nem todas iniciadas, mas que de alguma forma eram ligadas a Mãe Menininha”, afirma Cida Nóbrega, que assumiu a parte das pesquisas.
Cida e Regina autografam o trabalho amanhã, a partir das 18h, no Gantois (Federação), abrindo a série de atividades pelo aniversário de nascimento de Mãe Menininha, no próximo sábado. A programação culminará com um show estrelar na Concha Acústica, reunindo alguns dos seus admiradores famosos: Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Daniela Mercury, Marcia Short, Gerônimo e Mariene de Castro. Os três primeiros integram o time de entrevistados do livro, cujo estilo imprimido pela jornalista Regina Echeverria se aproxima de uma grande reportagem. “Mãe Menininha é uma personagem encantadora, com um coração enorme e muito importante para a divulgação do candomblé no país”, afirma Regina.
Bethânia, Gal e Caetano foram atraídos ao candomblé na popularização dos anos 70, período marcado pela invasão de famosos e políticos. “Boa vitrine para os modernos e os politicamente corretos da época, o candomblé foi integrado à vida cultural e cada vez mais prestigiado”, anotam as autoras. Jorge Amado, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Carybé, os ex-presidentes Washington Luís, Getúlio Vargas e João Goulart e praticamente todos os políticos importantes da Bahia. Todos passaram ou eram presenças freqüentes por lá.
Em 1973, Maria Bethânia e Gal Costa gravaram Oração a Mãe Menininha, a bela canção de Caymmi que tornou a religiosa ainda mais popular. Ao ouvir Gal cantando na tevê (um dos vícios de Menininha, fã de Chacrinha), a mãe-de-santo disse que sentiu um arrepio, chegou a chorar. “Como ela tem sentimento. Parece até que me conhece muito bem”, disse a ialorixá, que conheceria a cantora e faria seu santo pouco tempo depois.
O período também marca o início da fase de lua-de-mel com a imprensa, que noticiava todos os passos da casa, e era sempre bem recebida por Menininha. Vários dos artigos e reportagens foram usados como fonte da biografia. Um dado relevante é que, apesar da ampla exposição, Mãe Menininha manteve um estrito controle sobre os ritos do seu candomblé, sobre os quais se reservava o direito de não falar ou mostrar. “Ela tinha um dom natural de se expressar, de se comunicar, mas nunca abria os preceitos”, reforça Cida.
Tempos difíceis - A diplomacia e o jogo de cintura de Mãe Menininha vêm do tempo em que a religião era vista como caso de polícia, fortemente reprimida e discriminada. No livro, as autoras reconstroem brevemente o surgimento dos primeiros terreiros e sua ligação direta com os escravos desembarcados na cidade. Como o Ilê Iya Omin Axé Iya Massê, criado em 1849 pela nigeriana Maria Júlia da Conceição Nazareth, bisavó de Menininha. O irônico é que o nome popular do terreiro vem do belga e traficante de escravos Édouard Gantois, proprietário da longínqua gleba adquirida por Maria Júlia.
Segundo as pesquisadoras, o crescimento do terreiro começou com Puchéria da Conceição (1840-1918), filha de Maria Júlia e segunda na linha sucessória. Uma das marcas de seu mandato foi ter aberto o candomblé a pesquisadores como Nina Rodrigues e Manuel Querino. Com a morte de Puchéria, que não teve filhos, assumiu sua sobrinha Maria da Glória (1879-1920), mãe de Menininha. Apenas dois anos separaram o reinado de Maria Júlia e Maria da Glória, instaurando uma grave crise no Gantois. Traumatizada pela morte da mãe, Menininha foi morar longe da comunidade e da briga sucessória.
A ialorixá chegou a idealizar uma vida comum ao lado do marido, Álvaro MacDowell de Oliveira – branco de origem estrangeira – e das filhas Cleuza (1923-1998) e Carmen. Mas o chamado dos orixás foi imperioso. Depois de brigas, doenças e até mortes inexplicadas, ela foi empossada no cargo. “Foi Xangô, Oxaguiã e Oxum que sentaram Menininha na cadeira de ialorixá”, atestou Agenor Miranda (1907-2004), uma das maiores autoridades do jogo de búzios no país.
Mãe Menininha assumiu o Gantois aos 28 anos, em 1922, permanecendo até a morte. Um longo período, marcado pela diplomacia, diálogo e caridade. No livro, Cida e Regina mostram como a ialorixá foi montando a rede de articulações que uniu comunidade, autoridades, intelectuais e até pessoas de outras religiões. Mãe Menininha foi a representação mais fiel do sincretismo religioso que marcou e ainda está presente no candomblé. Iniciada ainda bebê pela bisavó, com apenas oito meses, cresceu com fé inabalável nos santos e orixás.
Cresceu cumprindo preceitos do catolicismo como missas e batizados, sem aparente contradição ou sofrimento. Numa de suas muitas entrevistas, deu uma definição precisa de si mesma: “Eu sou muito conformada, é difícil eu me zangar, principalmente com os orixás. Com eles e com Deus não me aborreço. Tudo que a gente passa é porque tem que passar. Para mim todas as religiões são verdadeiras, agora, cada qual na sua”.
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FICHA
Livro: Mãe Menininha do Gantois - Uma biografia
Autoras: Cida Nóbrega e Regina Echeverria
Editora: Ediouro/Currupio
Preço: R$59,90 (320 páginas)
Lançamento: Amanhã, às 18h, no Terreiro do Gantois (Federação)
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As autoras
Cida Nóbrega - Psicóloga de formação, Cida Nóbrega atualmente mora na Paraíba. Foi uma das fundadoras da editora Corrupio. Durante 20 anos, ela esteve no grupo de pesquisa de Pierre Verger, atuando como sua tradutora. É co-autora dos livros Caminhos da Índia, Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora do Axé Opô Afonjá e Pierre Verger, um retrato em preto e branco, o último em parceria com Regina Echeverria. Todos os livros foram publicados pela Corrupio.
Regina Echeverria - Jornalista com passagem pelos principais veículos do país, tem se dedicado, a partir da década de 1980, a perfis de nomes importantes da cultura nacional. É autora de Fucarão Elis, Cazuza, só as mães são felizes, Cazuza, preciso dizer que te amo e Gonzaquinha e Gonzagão, uma história brasileira.
Aqui Salvador, Correio da Bahia, 07.02.2006
http://www.correiodabahia.com.br/folhadabahia
/noticia_impressao.asp?codigo=121989
Tuesday, February 06, 2007
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