Thursday, January 11, 2007
Lavagem do Bomfim: Feijoada é prato obrigatório no rito profano
Feijoada é prato obrigatório no rito profano
Por Flávio Costa
Feijoada é o prato do dia. A afirmação está na boca dos veteranos da Lavagem do Bonfim, que não dão um passo em direção à Colina Sagrada sem antes provarem a iguaria. Para eles, ir ao tabuleiro mais próximo e provar da suculenta mistura de carnes e grãos é tão sagrado quanto amarrar a fitinha no adro da igreja. E opções não faltam: em todos os cantos do percurso de 8km há um tabuleiro, bar ou até mesmo uma casa aberta, onde é possível se deliciar com a comida mais famosa do país.
Há aqueles que antes de se dirigir à Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia preferem comer sua feijoada em casa mesmo, sem se arriscar com os temperos alheios encontrados nas barracas durante a caminhada. Não é o caso do policial rodoviário aposentado, Valdemiro Marcelino dos Anjos, 60 anos, que largou o descanso de Eunapólis, onde vive, para vir à capital baiana apenas com desejo de participar da Lavagem do Bonfim, o que ocorre, sem interrupções, há 25 anos. Valdemiro não consegue conceber a idéia de iniciar a caminhada rumo à Colina Sagrada, sem antes “forrar o estômago” com uma deliciosa feijoada. Ele não agüentaria percorrer os 8km do cortejo se não o fizesse. “Não há possibilidade de iniciar o circuito, de barriga vazia, sem comer um feijãozinho. É ele que dá a base necessária para a gente se sustentar durante o caminho. É tradição”, afirma Valdemiro, que devora seu prato preferido num dos tabuleiros montados no Mercado Modelo.
Ao lado do ex-policial, estava seu companheiro de festas de largo, o portuário Moacir José, 45 anos, que, munido de talheres, traçava ferozmente os pedaços de carne que restavam de seu prato. Os dois amigos, devidamente trajados de branco, como reza a tradição, afirmavam que feijoada do Bonfim tem que ser completa, sendo um ingrediente mais fundamental que os outros. “Não pode faltar mocotó”, dizia Moacir, ávido para repetir o prato.
No beco do Ministério da Fazenda, no Comércio, onde pelo menos seis barracas disputam a primazia da melhor feijoada, o técnico em montagem, Jacilai Souza, 35 anos, estava em dúvida onde comer. “Um feijãozinho no Bonfim é sagrado, agora tem que ter cuidado para o tiro não sair pela culatra”, afirmava Jacilai, ao fazer alusão a uma eventual dor de barriga que poderia lhe advir se comesse num lugar errado. “Mesmo com este risco, eu vou ter que comer. Sem beliscar um mocotó, acompanhado de uma cervejinha é impossível ter gás para chegar à igreja e fazer minhas preces”.
Para quem vende a feijoada no Bonfim, não há diversão. O trabalho começa pelo menos um dia antes do início da festa. A cozinheira Marinalva dos Santos dormiu às portas do Mercado Modelo para começar a labuta bem cedo. Às 5h, ela já atendia os primeiros fregueses. “Eu espero vender uns 200 pratos”, calculava a comerciante, que é moradora da Fazenda Grande do Retiro. “Na minha feijoada não tem mistério. É tudo muito limpinho, e feito apenas com produtos naturais, não gosto destas coisas artificiais. Todos os meus temperos são naturais”, declarava.
Já a comerciante Dália Ribeiro investiu na feijoada carioca, aquela que leva o grão preto e laranja. Assídua freqüentadora da lavagem, este ano ela preferiu abrir seu bar no Largo de Roma a cair na gandaia. Lá, um prato para duas pessoas saía ao preço módico de R$5. “Eu adoro a Lavagem do Bonfim, no ano passado não trabalhei apenas para curtir a festa, mas o fregueses sentiram saudade do meu feijão, tive que trabalhar este ano”. Quem não diz o que usa para deixar a feijoada mais saborosa é a vendedora Cristiane Souza, 30 anos, que possui um restaurante no bairro do IAPI e há três anos trabalha durante a Lavagem do Bonfim. “Cozinheira que se preze não revela seu segredo”.
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Safári etílico embriaga foliões
Na Lavagem do Bonfim, o sagrado e o profano se encontram como em nenhuma outra festividade na Bahia de todos os santos e orixás. Enquanto uns enfrentam o calor intenso e um longo trajeto numa verdadeira profissão de fé, outros só querem saber é de farrear. Regados a fartas libações alcoólicas, estas pessoas que vão à cidade baixa, na segunda quinta-feira de janeiro, nem cogitam a possibilidade de subir a Colina Sagrada. Mas há aqueles que conseguem juntar os dois lados e cumprem o ritual ao mesmo tempo em que caem na gandaia em diversos pontos dos trajeto.
Quando as baianas começavam a sair da Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia, o músico Macblai Ferreira, 28 anos, já tinha avançado em muito a sua odisséia etílica. Visivelmente embriagado, ele não dava a menor pelota para o desfile oficial que congregava baianas, autoridades, afoxé Filhos de Gandhy e fiéis. Reunido com os amigos no Mercado Modelo, a primeira parada de seu cortejo particular, ele só queria saber de curtição. “Só volto para casa tarde da noite. Onde estiver vendendo cerveja, a gente vai parar”, dizia sem qualquer indicação que se aproximaria da Igreja do Bonfim.
Dona de barraca na Ribeira, Neide Magalhães, 30, também só queria saber de festa, ele tinha percorrido os oito quilômetros que separam a Colina Sagrada do Comércio, fazendo a rota inversa, ao nascer do sol. Agora de acordo com ela, necessitava de “combustível” para realizar o caminho de volta. “Bonfim é uma festa para você reunir os amigos, reecontrar aqueles que você não via há muito tempo, enfim, curtir mesmo”. Fé que é bom? Necas.
Um dos pontos mais requisitados pela turma do álcool é o beco que fica ao lado do prédio do Ministério da Fazenda. Lá a velha guarda das lavagens passadas se reúne para contar estórias de outrora, enquanto a “birita” corre solta. Entre eles está o industriário José Borges, que há 25 anos marca presença na festa, sempre acompanhado de sua esposa.
'Nós temos 25 anos de casados e estamos completando também bordas de prata na Lavagem do Bonfim”. Enquanto provava a feijoada costumeira, José planeja encontrar um grupo de amigos na Calçada, num beco de nome impublicável. “Bonfim é antes um acontecimento de alegria. E não precisa ter pressa para chegar na Colina. Parar aqui no beco do Ministério é sagrado, faz parte da tradição. Parando numa barraquinha ali, em outra acolá, todo mundo acaba chegando”.
Há quem prefira encarar o cortejo na cadência do samba, mas sem perder o objetivo maior que é chegar ao templo. Em Água de Meninos, a vendedora de acarajé Jorgina Abreu, 55, seguia a passos ritmados os grupos de pagode que passavam por ela, enquanto chegava cada vez mais perto de seu objetivo, que era alcançar o templo. “Eu estou me divertindo sem ter deixado de cumprir minha obrigação”, declarou.
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Sem hora para a farra acabar
Muitos apenas olharam de longe o cortejo seguir em direção à Colina Sagrada. Outros fizeram questão de acompanhar todo trajeto de cerca de 8km. Mas, no final de todo o ritual religioso, uma multidão continuou concentrada ao longo de toda a cidade baixa em ritmo de festa profana. Para muitos, a homenagem ao Senhor do Bonfim foi apenas um pretexto para beber com os amigos e cair na folia.
Pelas ruas do Comércio, o cenário era composto por dezenas de mesas e gente bebendo no meio pista. A festa parecia não ter hora para acabar. Lá, pequenos carros de som arrastavam um público que não estava preocupado com o horário de voltar para casa. “A festa está apenas começando. Isso aqui é uma maravilha. É a festa do povo baiano”, disse a comerciante Marinalva Abreu, 34 anos, que conseguiu uma folga no trabalho para participar da festa. Na mesma empolgação estava a estudante Priscila Santiago, 19 anos, que acompanhava o arrastão das mulheres solteiras. “Hoje eu só saio depois que acabar tudo. Não tenho nada melhor para fazer hoje na cidade. Quem está aqui tem mais é que aproveitar”, disse.
Por todo o caminho da cidade baixa, os sinais deixados pela multidão era de uma festa que não tinha nada de santa. Em todas as ruas, o que se via era muita bebida regada a ritmos nada religiosos. Pagode, axé, arrocha e até reggae tomaram conta da festa e não deixou ninguém parado. Com coreografias improvisadas, as mulheres que dançavam no meio da rua, atraíam fãs na multidão.
Ao pé da Colina Sagrada a festa não tinha hora para acabar. Depois de uma longa caminhada, muita gente não desanimou, nem mostrou sinal de cansaço. Para recarregar as forças valeu de tudo, principalmente recorrer às tradicionais feijoadas que eram servidas nos bares espalhados por toda a rua. No Bar do Bira, o prato custava R$5 e era considerado “levanta defunto”. “Isso aqui é uma maravilha. Só mesmo um prato de feijão para rebater o cansaço”, afirmou o motorista Jair Sacramento dos Santos, 41 anos, sem se preocupar com os efeitos da ressaca do dia seguinte. (CB)
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Axé music, paquera e suor
Por Cilene Brito
Acordar cedo e seguir o cortejo de cerca de 8 m, da Conceição da Praia até o Bonfim, não estava nos planos do dia. Para muita gente, o ponto alto da festa do Bonfim eram as festas fechadas, bem longe do povão. A data religiosa foi apenas um pretexto para mais uma prévia do Carnaval. Na Avenida Contorno, o tradicional Bonfim Light reuniu um público jovem e descolado no Bahia Marina, um dos espaços mais concorridos da cidade. Muitos sequer sabiam o significado da festa, mas aproveitaram o dia para cair na folia e paquerar.
Em sua décima edição, a festa foi animada pelas bandas Rapazzolla, Jammil e Uma Noites e Asa de Águia. Para ter acesso à festa a turma formada principalmente por “patricinhas” e “mauricinhos” desembolsou R$80. Investimento, que para eles, era mais que justificável. “Comprei há quase um mês para garantir o meu. Para mim essa é a melhor festa do Verão depois do Carnaval. Estava contando os dias”, disse a psicóloga Renata Campos, 24 anos, fã da banda Asa de Águia.
O clima de paquera tomou conta da Avenida Contorno antes mesmo do início da festa. “Olha só para isso aqui. Não saio daqui solteiro”, comentou empolgado o estudante Felipe Rezende. Solteiro e acompanhado por mais dois amigos, ele tentava conseguir uma companhia antes mesmo de entrar na festa.
O clima de axé também tomou conta do ensaio do Ara Ketu, no Trapiche Barnabé, no Comércio. A festa O Banho de axé atraiu um público menos teen, que curtiu as bandas Domix, Olodum e Ara Ketu e contou com a participação especial do cantor Cetano Veloso. Lá, o passaporte custou R$40 e o público também não escondia a satisfação de estar num espaço fechado com grandes nomes da música baiana. “Pagaria até mais. Depois da parte religiosa, todo mundo cai na festa. Para mim, aqui é o melhor lugar para curtir o lado profano da Lavagem do Bonfim”, disse a bancária Ângela Martins Dias, 32 anos.
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Acordes dissonantes
Engana-se quem pensa que festa Popular em Salvador é sinônimo de axé e pagode. Numa das transversais do lado da Igreja do Bonfim, na Rua Travasso de Fora, o som que atraía a multidão era produzido por guitarra e bateria. Como ocorre há 12 anos, bandas de rock de Salvador realizaram o Bonfim Hard, também conhecido como Lavagem do Beco do Morotó. O evento reuniu grandes bandas do cenário rocker baiano, como Retrofoguetes, Cascadura, Mizeravão, Efeito Joule e Nancyta.
Num palco improvisado na varanda da residência do guitarrista da banda Retrofoguetes, Morotó Slim, o rock’n roll rolou solto e atraiu uma multidão de roqueiros e curiosos. A idéia, segundo Morotó, começou como uma brincadeira de três amigos roqueiros e hoje está consolidada. “Morávamos no Bonfim e sempre acompanhamos a lavagem, mas sentíamos a necessidade de fazer a festa do nosso modo. O primeiro ano fizemos no chão e hoje já temos um público fiel que cobra a gente pela festa todos os anos”, conta. Para Rex, o baterista da banda, o festival é uma forma de interação com o público. “Nossa intenção não é competir com os outros. Queremos mostrar que a festa é para todos os gostos e todos têm direito de participar de seu jeito”, disse.
O som começou às 16h e não deixou ninguém parado. Roqueiros vestidos de preto com camisas das bandas de sua preferência assistiam às apresentações das bandas que invadiram a noite. O clima, que contrastava com as danças rebolativas do axé e do pagode, era de paz e animação. A idéia deu certo e é aprovada por todos da área. “Eu não perco um ano. Acho a idéia maravilhosa. Quem gosta de rock em Salvador nem sempre encontra um espaço para ouvir uma boa música”, disse o estudante Vinícius Augusto Xavier, 22 anos. Até mesmo aqueles que não se consideram roqueiros participaram da platéia. “Acho a idéia diferente. Acho que festa popular deve ter espaço para todos. O som deles é bom e todo mundo gosta”, disse Mário Fernando da Silva, 25 anos, morador do bairro. (CB)
Aqui Salvador, Correio da Bahia, 12.01.2007
http://www.correiodabahia.com.br/aquisalvador/noticia_
impressao.asp?codigo=120390
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