Tuesday, December 05, 2006

Quilombos na origem de confronto silencioso entre negros e brancos

Sent: Sunday, December 03, 2006 9:05 PM

HUMBERTO TREZZI*

País sem fama de confrontos étnicos, o Brasil vive um conflito silencioso entre brancos e negros, inclusive no Estado (RS). A tensão cresce sobretudo entre descendentes de escravos e agricultores de origem européia em torno de áreas consideradas remanescentes de quilombos.
Redutos negros ilhados por um Brasil globalizado, essas propriedades foram povoadas por descendentes dos 3 milhões de escravos africanos trazidos ao país entre os séculos 18 e 19. Por determinação da Constituinte de 1988, o governo federal, por meio da Fundação Palmares (Ministério da Cultura), identifica e determina a devolução a famílias negras de áreas que seriam remanescentes de quilombos.

De 127 áreas rastreadas no Estado, 25 tiveram processo de regularização aberto pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), encarregado de medir e, se for o caso, entregar as terras aos negros. Eles reúnem 3.055 famílias. A maior parte dos processos está na primeira etapa, de identificação, quando antropólogos e sociólogos pesquisam a presença de negros no passado. Aí começam os problemas.

Uma das questões é definir o que é um quilombo. Muitas áreas foram fundadas por ex-escravos, em terras compradas ou doadas pelos antigos fazendeiros. Seriam núcleos negros, não necessariamente rebelados. A Fundação Palmares aceita que famílias negras declarem "por autoreconhecimento" serem descendentes de quilombolas, embora as brancas afirmem ocupar as mesmas áreas há mais de um século. Em caso de desapropriação, os colonos brancos têm de ser removidos e indenizados pela União. E eles não querem sair.

Muitos tentam barrar na Justiça a entrega das áreas às famílias negras. Em Restinga Seca (Região Central), onde duas comunidades estão previamente reconhecidas como "redutos de pretos", brancos e negros trocam desaforos. Os brancos argumentam que os bisavós chegaram numa migração de 1850. Os negros, que antepassados compraram a área.

Em Sertão (Planalto Médio), as famílias negras reivindicam uma área de 1.323 hectares, onde moram 80 famílias brancas. Délcio Luis Cecconello, 37 anos, teme perder os 20 hectares onde planta soja, milho, trigo e cria vacas e porcos.

- Temos amor por essa terra e não fizemos nada de errado para ter que sair dela - desabafa.

Mãe de três filhos, Laides Oliveira da Rosa, 30 anos, diz integrar a quarta geração da família negra que mora na comunidade de Mormaça.

- Temos nossos direitos, que há anos estavam esquecidos. Vamos esperar para ver o que o Incra determina - diz Laides.

Em Maquiné, no Litoral Norte, brancos e negros garantem estar na região de Morro Alto desde o Império. O vereador José Cláudio Goldani (PMDB), descendente de italianos, reclama da desvalorização das terras da família, enquanto exibe a marca de três tiros, que relaciona à disputa. A contestação vem de uma vizinha:

- Os estrangeiros receberam terra. Só os negros foram libertados sem nada - pondera a auxiliar de enfermagem aposentada Irenita Francisca Nunes, 57 anos, neta de escravos.

Incra promete indenizar os brancos desalojados

A tensão não cresce apenas entre agricultores. Em Bagé, famílias negras reivindicam áreas da empresa de reflorestamento Votorantim. Em Gravataí, algumas famílias querem parte da área da General Motors.

- Eram esperadas divergências. O branco que tiver legitimidade será indenizado, e as terras com origem em quilombos, devolvidas aos negros - afirma José Ruy Tagliapietra, responsável no Incra pela demarcação no Estado.

Filha de escravos, Aurora Silveira (na foto) resume o discurso dos negros.

- Espero ver meus filhos com terra para trabalhar. E não vou ficar triste se meus vizinhos brancos tiverem de ir embora - revela a mulher de 97 anos.

* Colaboraram Cleber Bertoncello e Rodrigo Cavalheiro

( humberto.trezzi@zerohora.com.br )


Fonte: Zero Hora – Porto Alegre, RS - 03 12 2006
Site: www.zerohora.com.br

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