Friday, January 12, 2007

"Sou negra! Filha de preto com preta, sou preta!"

"Sou negra! Filha de preto com preta, sou preta!"


Como podemos definir alguém que, ao ouvir sua voz pelo telefone, pela primeira vez, diz logo de cara: "Eu só posso te receber em casa”. No mínimo, diríamos que esta pessoa é simpática, porém, louca. Afinal, nos dias de hoje não se abre a porta de casa para um estranho.

Pois a atriz e cantora, Maria José Motta ou Zezé Motta, como preferir, fez mais! Abriu muito mais do que sua casa, uma certificação concreta da sua carreira de sucesso, e mostrou que desde o início é muito difícil separar a artista da militante. “Não é só a questão do negro que me aflige. O que me preocupa 24 horas é a questão da injustiça com o ser humano”, desabafa Zezé que, com muito prazer e sabedoria, recebeu a galera do Instituto de Artes TEAR – Rio de Janeiro.

Ana Paula Lisboa, Patrícia Silva, Vanessa Sant’Anna, Uiara Leão, Ana Bispo, Mabel Botelli e Raika Julie Moisés, do Rio de Janeiro (RJ)**

Em que momento você disse: “Eu quero ser atriz”? E porquê esta escolha, uma vez que, você se formou em contabilidade?
Zezé Motta: Desde que cheguei no Rio, em 1946, mesmo com dificuldades, minha família nunca desistiu dos sonhos que nós tínhamos. Aprendi a ter garra e persistência e, além disso, acho que o astral sempre conspirou ao nosso favor. Ganhei uma bolsa de estudos no Teatro Tablado e, desde então, não tive dúvidas de interpretar, representar, viver vários personagens era o que eu queria pra mim, era aquilo que eu ia exercer com amor. Além disso, meu pai era músico erudito e, por causa dele, sempre tive um contato com a música, com a arte.

E o que significa ser uma artista negra num país onde o número de artistas negros ainda é pequeno?
Zezé Motta: Você está falando desta falta de artista negros em 2006, agora imagina o que foi isso pra minha geração. Há 39 anos atrás, quase não se via atores e atrizes negras. E quando existia, era para representar papéis de submissão. O fato do Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão tem reflexos até hoje. É por causa disso que, infelizmente, a maioria dos negros vive de forma clandestina, seja na marginalidade, na mendicância. A maneira que eu encontrei para enfrentar essa realidade foi sem mágoas e sem ressentimentos, foi com muita perseverança mesmo, com vontade. Quando eu digo isso, eu quero reforçar a importância de acreditar em si mesmo, acreditar na carreira que se quer seguir. Ser um artista negro significa ter coragem, ter crença e amor pelo que se faz.

Como você vê a Abolição da Escravatura?
Zezé Motta: Eu vejo a abolição como um ato político que interessava para a Princesa Isabel naquele momento, mas que de fato não houve. Não houve abolição porque ninguém se preocupou com o que, aqueles negros abolidos iam fazer amanhã. Não existiu um programa que garantisse dignidade para os abolidos. Eles acordaram e continuaram sem identidade, sem referencial, sem estrutura pra nada.


Você foi muito questionada sobre o seu papel na novela Sinhá Moça?
Zezé Motta: Sim, eu fui muito questionada. As pessoas me perguntam como eu, uma atriz reconhecida e tal, tenho a coragem de representar uma escrava e eu digo duas coisas. A primeira é que é disso que eu vivo. Tenho 62 anos, sou atriz, tenho contas a pagar e vivo dos personagens que represento e no momento, não tinha outra novela para eu atuar. A segunda resposta é que não dá para sermos omissos. Se o assunto vem à tona a gente tem que discutir e deixar claro que a escravidão não acabou. Eu fico feliz em saber que, um papel que eu represento faz com que as pessoas discutam e pensem mais sobre o assunto, que não fiquem convencidos que, a partir da Lei Áurea a escravidão chegou ao fim, pelo contrário, ela perpetua.

E o fato de atrizes negras representarem somente papéis específicos para atrizes negras?
Zezé Motta: Costumamos dizer que a expressão “faca de dois gumes” se transformou em “faca de dois legumes” quando começamos a brigar pela distribuição de papéis. É que a partir dali, começamos a ver atrizes brancas fazendo o papel da empregada doméstica, da cozinheira, só que ela, sempre se dava bem. Casava com o patrão, ganhava na loteria, entre outras coisas. Mas a mídia ‘dançou’ e surgiu a faca de dois legumes - isso serviu de alerta: estamos, novamente, perdendo espaço e papéis nessa briga! Aí, mudamos o discurso e começamos a exigir papéis independentes da cor. A gente queria trabalhar como todo mundo e não só para papéis pré-pensados para negros. A justificativa era que a invisibilidade do negro na mídia era uma representação da realidade, afirmando que haviam poucos negros médicos, engenheiros, etc e que a maioria era porteiro, motorista. Nós, de fato, ainda temos poucos negros ocupando profissões consideradas nobres, mas temos, eles existem ainda que em pequeno número e isso não pode ser esquecido. O que eu lamento é que, quando algum ator negro faz um outro papel de relevância, geralmente, ele representa um mau-caráter, sem crédito. Ainda que sejam bons atores, eles fazem papéis de f.d.p.

Você já vivenciou situações de preconceito/discriminação no ambiente de trabalho?
Zezé Motta: Se eu for falar do passado, vamos passar a noite toda conversando. Mas por exemplo, na época do sucesso e da repercussão do filme “Xica da Silva”, saiu uma reportagem na revista Vogue dizendo que a atriz escolhida para representar a Xica da Silva era uma negra feia, porém exótica. Embora eu não seja uma pessoa vaidosa e nem estivesse preocupada em ser bonita, mas sim em ser do bem, eu me perguntava o porquê daquilo. Porque eles me expunham de maneira tão agressiva.

E hoje?
Zezé Motta: Hoje, eu vivencio o respeito, o reconhecimento da minha militância e do meu trabalho artístico. A única briga que vou ter que comprar de agora em diante é a questão do salário. Isso é dado estatístico: o homem ganha mais do que a mulher, o homem branco ganha mais do que o homem negro, a mulher branca ganha mais que a mulher negra. Ou seja, a mulher negra está ferrada! E eu vou falar sem nenhum pudor que vejo atrizes despreparadas ganhando três, quatro, cinco vezes mais do que eu. Eu agradeço a Deus por estar nesta profissão por amor e por sobreviver com o que eu faço, não posso reclamar da vida, vivo muito bem. Mas esse fato me revolta! Estas atrizes ganham muito dinheiro e nem sabem o que estão fazendo lá. Me pergunto, qual é o critério pra essa diferença?

Você já recusou papéis?
Zezé Motta: Eu me lembro que uma vez, há bastante tempo atrás, a TV Globo me convidou para fazer a minissérie “Festa de Aniversário”, com texto da Clarisse Lispector e eu tive coragem de dizer não. Eu disse não, porque tinha acabado de ganhar todos os prêmios que existe no Brasil para cinema com o filme “Xica da Silva” e não achei justo, naquele momento esquecer o meu discurso de que para se ter sucesso, para se alcançar os objetivos não precisamos ser brancos ou bonitos, aliás, você pode até ser feio, mas isso não poder ter a ver com a sua cor de pele. O que tem que estar em jogo é sua competência, a paixão com que você desenvolve seu trabalho.

O que significou fazer “Xica da Silva”?
Zezé Motta: Significou o início do reconhecimento do meu trabalho e do meu talento. Mostrei que não estava ali por brincadeira e não deixei para trás minha militância. Pela primeira vez, uma negra brasileira era considerada símbolo sexual, isso, naquele momento ultrapassava qualquer barreira de vaidade e atingia a militante Zezé Motta, uma das fundadoras do movimento negro. Independente do que os outros pensavam, aquilo servia de resposta pra mim mesma de que eu era capaz!

Em algum momento na sua carreira, teve um processo de auto-reconhecimento? De você saber exatamente o que representava ser negra, ser atriz?
Zezé Motta: Essa pergunta é muito boa! Como sempre fui moradora da zona sul do Rio de Janeiro, sempre vivi num contexto diferente da maioria dos negros. Estudei num bom colégio, meu primo e eu éramos os únicos negros que estudavam no Teatro Tablado por tínhamos bolsa e eu era a única aluna negra do CCAA (escola de idiomas). Então, quando eu me olhava, nem sempre me reconhecia. Na adolescência, eu sonhei em fazer plástica no nariz, colocar lentes verdes e até, fazer plástica na bunda. Porque eu era diferente de todos, era a exceção. Cheguei a usar uma peruca lisa, com corte chanel. Mas aí, chega uma hora que caiu a ficha. Fui pros Estados Unidos com o Teatro de Arena, junto com Augusto Boal. Íamos apresentar “Arena conta Zumbi” e “Arena conta Bolívar”. No Teatro de Arena nós revezávamos e todos, em algum momento, faziam Zumbi. E eu, dei a bobagem de chegar no Halley (bairro estadunidense) com aquela peruca lisa. Todo mundo questionava. Eu fui chamada de alienada, Augusto e eu éramos loucos porque não sabíamos ou não víamos que a minha falta de identificação era tão chocante assim. Mas essa experiência foi legal porque a partir daí, eu comecei a me aceitar. Eu me vi. Cheguei no camarim, tirei aquela peruca e foi como um batismo. Eu me vi como eu realmente era.

E o processo de embranquecimento que alguns atores são submetidos?
Zezé Motta: O negro passou a ser aceito na mídia a partir da mulata. O negro pelo negro, antes, não era aceito. Ele tinha que passar por um processo de embraquecimento. Mas, uma vez fiz uma empresária, na novela “Corpo Dourado”, e alisei o cabelo. As pessoas me questionavam sobre isso, sobre este possível “embranquecimento” mas a produção decidiu que uma empresária negra não precisa ter o cabelo trançado ou black-power. E, naquele momento, eles tinha razão. Eu não precisava me vestir de negra. Não era necessária nenhuma fantasia. Eu sou o que eu sou. O problema não é ter o cabelo liso, o duro é você alisar o cabelo para embranquecer. Você alisar o cabelo pra agradar o outro, isso não pode. E isso vale pra qualquer um, não só pro negro. Tem que ser pra si mesmo, pra sua vaidade.



E a questão da militância?
Zezé Motta: Uma vez ouvi o Gilberto Gil comentar sobre isso e ele tinha razão. Ele dizia que para ser militante não significa se vestir de bata africana e turbante ou cabelo black-power. Você não precisa se fantasiar de militante ou se é, ou não é. O que você precisa ter é consciência política do que se está exercendo, é saber que seu discurso não pode ser em vão, tem que estar de acordo com suas ações e não com sua aparência. Eu por exemplo, não tenho paranóia de ser negra. Não estou preocupada 24 horas por dia só com a questão do negro. Estou preocupada com a questão da injustiça que o negro e que o ser humano é submetido. Eu fui predestinada pra levantar a bandeira do movimento negro. Antes de criar o Cidan*, a minha proposta era um sindicato para as empregadas domésticas. Minha militância tem a justiça como base, como eixo.

Você acredita que o Brasil pode superar a discriminação?
Zezé Motta: Sim, a gente tem que acreditar nas coisas boas, no bem, tem que perseverar. Acho que o primeiro passo, é a gente reconhecer o outro como ser humano, independente do que ele esteja vestindo, da crença ou da cor de sua pele. Você tem que me ver como ser, antes de ver a Zezé Motta, atriz e negra. A gente tem que se respeitar, tem que ser justo com o outro e claro, tem que se ver como se é e se agradar, manter a própria identidade.

* CIDAN: Centr Brasileiro de Informação e Documento do Artista Negro.
Fundando em 1984 pela atriz Zezé Motta, o CIDAN visa a promoção e a inserção dos artistas negros no mercado de trabalho. Além disso, realiza e promove cursos visando a promoção de jovens atores bem como a reciclagem de artistas e técnicos. Outras informações: www.cidan.org.br

**Ana Paula Lisboa, Patrícia Silva, Vanessa Sant’Anna, Uiara Leão, Ana Bispo, Mabel Botelli e Raika Julie Moisés também são integrantes do Instituto de Arte TEAR, parceiro da Vira

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