Saturday, September 02, 2006

Vim buscar sua Alma

Num entardecer de agosto, Maria (o nome dela não é esse), 19 anos, saiu de casa para ir ao colégio, numa comunidade popular da Zona Oeste do Rio, onde mora desde que nasceu. Ao dobrar uma esquina, deparou-se com o personagem mais famoso das redondezas.

Um veículo blindado, escuro, de metal, as janelas minúsculas com vidros cobertos.

E que falou, pelo alto-falante, para a viela inteira ouvir: — Tá indo pra onde? A jovem vacilou por um momento, diante do surrealista diálogo com uma máquina.

Mas respondeu: — Para a escola...

— Então volta para casa.

Maria engoliu a humilhação, girou nos calcanhares e obedeceu — lamentando o azar de ter cruzado com o Caveirão.

Relatos como o dela multiplicamse às dezenas pelas favelas cariocas, o mundo onde o blindado adaptado dos carros de transportes de valores virou protagonista na guerra cotidiana entre policiais e traficantes.

O bordão mais usado pelos policiais durante os passeios protegidos no carro à prova de bala caiu na boca do povo: “Sai da frente, vim buscar sua alma”.

A macabra eloqüência transformou o Caveirão na mais odiada representação do Estado entre os pobres do Rio.

Raps e funks cantados nos bailes criticam o blindado e em algumas comunidades são construídas barreiras para evitar que ele entre. “Quem mora na favela tem o direito de viver/ Quem vive na favela não agüenta mais sofrer/ Ih, o Caveirão vem aí/ Sai Caveirão, sai Caveirão, sai Caveirão”, canta Edílson Ernesto, morador do complexo da Maré, no funk “Sai, Caveirão”.

— E não resolve nada. Eles vêm aqui passear, esculacham a gente, mas os bandidos se escondem. Sobra para os trabalhadores — reclama uma dona de casa da Mangueira.

Sem saber, ela acerta no alvo do problema. Sob o justo argumento da proteção aos policiais, que enfrentam bandidos em vantagem estratégica (conhecimento do terreno, posição superior na região, etc), o Caveirão simboliza também o isolamento completo entre os homens da lei e os cariocas subjugados pelo tráfico.

— O olhar da segurança sobre as favelas é o discurso da guerra. Ninguém se sente seguro com a presença do Caveirão.

A mensagem que ele passa é de que a polícia “ocupa” a favela, não “está” na favela. Como se fosse um território hostil — ataca Marcelo Freixo, da ONG Justiça Global. — Temos descrições de revistas feitas à distância, com o policial dando as ordens de dentro do carro — descreve ele, lembrando que o Caveirão circula pelas comunidades populares desde 2000, apesar de o resto do Rio só ter ouvido falar dele há dois anos.

Tempo suficiente para o blindado da polícia trafegar a toda velocidade na estrada do folclore. As frases mudam, de acordo com o relato. “Troque o bandido por um pintinho” (Jacarezinho); “Trabalhador, a gente bate na cara; bandido, a gente varre com fuzil” (Rocinha).

“Vaza, princesa, porque a gente vai varrer; vaza lá pra casa” (Mangueira).

— O Caveirão é um instrumento de terror e controle sobre guetos pobres. Além disso, não ajuda a resolver as questões que afligem a elite — analisa Marcelo Freixo. — Só serve mesmo para turbinar o conflito.

As origens do blindado e seu uso em outros países dão traços explosivos à controvérsia.

Carro semelhante ao que passeia pelas favelas do Rio era usado na África do Sul do apartheid.

Todos os museus que não deixam esquecer o sangrento período do governo de minoria branca têm, no acervo, um veículo amarelo, terrivelmente semelhante ao primo carioca.

Lá, ele era chamado “Mellow yellow”, e utilizado para vigiar a entrada dos guetos onde os negros viviam confinados.

A coincidência pavimentou o caminho do Caveirão à avenida da fama. Em 2007, ele estará na Sapucaí, como parte do enredo da Porto da Pedra, que falará do apartheid. O carnavalesco Milton Cunha descreve o estupor ao entrar no Red Location Museum, em Port Elizabeth, e viver experiência semelhante à da favelada Maria — dar de cara com o Caveirão.

— Fiquei passado! Ainda me lembro do prefeito da cidade, a meu lado: “Como um governo pode dizer que governa em nome do povo com uma coisa dessas?” E lembrei do Rio. Não deu certo lá, não dará aqui. Não é digno, não é humano — protesta ele, que batizou a versão carnavalesca do blindado de “Caveirão elitista da maldade”.

— O carro entrou na mística popular como um bicho-papão da vida real — constata Milton, lembrando que, nos últimos 20 anos, a sociedade sul-africana se reconstruiu como nação e, por isso, os caveirões de lá viraram peças de museu.

Aqui, a polícia usa a própria sobrevivência de seus homens como justificativa para manter rodando o blindado que ganhou o apelido por causa do símbolo do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM, uma caveira.

Oficialmente, não é um instrumento de ataque, como um tanque. Mas há controvérsias.

— Eles entram atirando, acabam com festas na comunidade, porque associam tudo ao crime.

Mas não tem nada a ver. As pessoas humildes acabam punidas injustamente — reclama o presidente da associação de moradores de uma favela da Zona Sul.

Almas que o Caveirão não conseguirá conquistar.  viagem essencial do Caveirão conduz a um número que, para a polícia, serve de referendo à eficácia do veículo blindado na condução de PMs em territórios conflagrados. As mortes de soldados caíram à metade desde 2000, quando o carro passou a trafegar no tiroteio cotidiano das áreas mais violentas do Rio. O comandante do Bope (Batalhão de Operações Especiais da PM), tenentecoronel Mário Sérgio de Brito Duarte, explica que, noves fora crenças e simbolismos, o blindado é apenas para a condução segura das tropas.

— Precisamos da proteção para entrar num espaço de guerra sem que os policiais sejam mortos. O blindado não é usado como tanque, mas como veículo de transporte inserido num planejamento — sustenta ele, tomando a precaução de não usar o apelido famoso. — As forças que vão atuar naquelas regiões devem estar prontas para responder ao comportamento paramilitar dos bandidos.

Eles têm insumos militares — argumenta.

O simbolismo, para o oficial da PM fluminense, está ligado ao perfil da longeva guerra contra o tráfico. O Caveirão substituiu a pistola 45 — “Que virou até letra de música” — e o fuzil AR-15, como ícone da violência nas comunidades populares.

— Imagino que o pai que precisa evitar que o filho fique na rua deva dizer “Cuidado com o Caveirão”. Claro que o carro é algo diferente do que as pessoas se acostumaram a ver, em relação à polícia. Daí, o valor simbólico que ele ganhou.

Para a polícia, é apenas um equipamento de proteção, sem função de ataque — assegura ele, citando a sigla VBTP (Veículo Blindado para Transporte de Tropa). — Hoje, nós chegamos a lugares onde antes não tínhamos condições operacionais de ir.

Numa argumentação ao mesmo tempo firme e ponderada, o comandante do Bope detecta um “discurso ideologizado” nos protestos contra o Caveirão, especialmente nos que acusam a polícia de usar o blindado contra as comunidades populares. Duarte dispara contra o “comportamento indesejado, anômalo, que não soma para a atividade operacional”, referindo-se às frases que conjugam almas, fuzis e vagabundos numa semântica sombria descrita por dez entre dez moradores de favelas.

— Não há orientação para uso de frases como essas. Ao contrário, é para não fazer nada assim — informa. — Se houver prova desse comportamento, o policial responderá por ele. A guerra psicológica, de discursos, não nos interessa.

A antipatia que inevitavelmente pega carona no Caveirão está na categoria “preço a se pagar”. O tenente-coronel Duarte lamenta a impossibilidade de a polícia estar presente por igual em todos os lugares da cidade, mas lembra que o tráfico não permite o funcionamento dos PPCs (Postos de Policiamento Comunitário), entre outras estratégias de segurança que o acirramento dos conflitos aposentou.

— Não deve ser fácil para os moradores conviver com essa realidade limitadora de direitos.

Daí nossa idéia de que a população das favelas precisa ser libertada desses homens — defende o oficial, sem se deixar seduzir pelo otimismo indevido.

— Infelizmente existe um preço a se pagar, que é enxugar o gelo que enxugamos todo dia. (Aydano André Motta) 

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