Monday, July 17, 2006

A ação afirmativa nas universidades

JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN

A ação afirmativa nas universidades


No Brasil, o negro ganha em média a metade do que um branco, e 2/3 da diferença é atribuível à educação

UMA DECISÃO da Suprema Corte dos Estados Unidos em 2003 proibiu a utilização de cotas, mas aprovou o uso de outras políticas de ação afirmativa na admissão nas universidades públicas americanas. O voto foi apertado (5 a 4), e um dos dissidentes, o juiz Clarence Thomas, negro, mas reconhecido como o mais reacionário membro da corte, escreveu que a ação afirmativa prejudica as minorias, retardando o seu progresso. A tese de Thomas era que, uma vez admitidos, os alunos de cor não conseguiriam sucesso na competição com os colegas.
Em resposta, o ex-presidente da Universidade Princeton William Bowen, co-autor de um estudo sobre a questão, declarou: "De alguma forma, os cientistas sociais devem dizer claramente aos juízes, mesmo ao Clarence Thomas, que a evidência (empírica) é relevante". Bowen e Derek Bok, ex-presidente da Universidade Harvard, estudaram uma base de dados com 45 mil ex-alunos de algumas das instituições americanas mais seletivas e concluíram exatamente o oposto do que Thomas escreveu no seu parecer. Mesmo aqueles que tiraram notas baixas nos testes do final do curso secundário -e, portanto, mais provavelmente admitidos por causa da ação afirmativa- ganharam muito por freqüentar uma universidade de elite.
O pesquisador do Ipea Sergei Soares documentou que, no Brasil, o trabalhador negro ganha em média a metade do que ganha um branco, e quase dois terços dessa diferença é atribuível à educação. Aumentar o acesso dos negros à escolaridade é um passo essencial para diminuir esse hiato de renda, e a evidência empírica internacional e brasileira pode ajudar a indicar o melhor caminho para fazê-lo. Os adversários das cotas no ensino superior federal têm bons argumentos. Há o perigo de o sistema de cotas possibilitar o acirramento da intolerância racial. Para beneficiar a sociedade como um todo, o sistema universitário precisa ser meritocrático, e os estudantes devem ser selecionados de acordo com a sua capacidade para aproveitar o ensino.
A maioria das instituições americanas de ensino adotou um sistema menos rígido de ação afirmativa, que favorece a admissão de alunos negros e hispânicos sem instituir cotas e que responde a esses receios. Apesar de a direita americana atacar, por vezes com sucesso, as preferências para as minorias, o conflito racial é bem menor hoje do que era na década de 60. E as universidades americanas de elite, onde a ação afirmativa é mais efetiva, têm um ensino de qualidade invejável e contribuem cada vez mais para o desenvolvimento daquele país.
Talvez o mais forte argumento contra as cotas é que os jovens mais pobres que não fizerem parte dos grupos beneficiados teriam ainda maior dificuldade de acesso à boa educação universitária. No Brasil, os alunos dos cursos de maior prestígio nas universidades públicas provêm majoritariamente das famílias mais ricas, e um sistema de cotas necessariamente vai tornar ainda mais difícil para um jovem branco de origem modesta aceder a esses cursos.
Para aumentar o número de jovens pobres, inclusive de cor, nas boas faculdades, é preciso abandonar o dogma de que a universidade pública precisa ser gratuita mesmo para os alunos abastados. Os recursos gerados pelas taxas pagas pelos alunos que puderem pagar devem ser utilizados para subvencionar cursos de preparação e dar bolsas de manutenção para os alunos mais carentes. Mais vantajoso seria criar bolsas para alunos carentes que pudessem ser usadas em qualquer faculdade pública ou privada de qualidade.
Mas, mesmo se o ingresso dos mais pobres nas instituições de ensino federais aumentasse, a evidência empírica aponta que, provavelmente por causa da discriminação e do preconceito que os jovens de cor e suas famílias enfrentam, os negros ainda estariam sub-representados entre os alunos das melhores escolas, a menos que políticas de ação afirmativa sejam adotadas.
Há muitos problemas com um sistema de cotas, e seria muito melhor se cada universidade federal tivesse autonomia para instituir políticas próprias para aumentar a diversidade do seu corpo discente. Mas pior ainda é não fazer nada.


JOSÉ ALEXANDRE SCHEINKMAN , 58, professor de economia na Universidade Princeton (EUA), escreve quinzenalmente aos domingos nesta coluna.
jose.scheinkman@gmail.com


Folha de S.Paulo, Dinheiro, domingo 16.07.2006

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