Saturday, July 15, 2006

África e diáspora têm a mesma cara

Estética da negritude revela a identidade de povos irmãos
Homogênea concentração humana na II Ciad mostra como África e diáspora têm a mesma cara
Pablo Reis

Das roupas aos traços fisionômicos, participantes da conferência exibem convergências da identidade afro

Na subida da escada rolante, um professor de história de uma universidade americana, nascido na África, que naquele momento parece um concentrado ogã. Na fila do cafezinho, duas senhoras ostentando panos-da-costa que poderiam compor uma foto de Pierre Verger. Nas mesas de discussão, um antropólogo baiano discute com o debatedor angolano e apenas um ligeiro sotaque separa os dois. No corredor, um moçambicano tenta identificar falsos cognatos com o colega de Cabo Verde. O mestrando queniano assiste a tudo lamentando não dominar o português. O segurança, de terno escuro, pode ser confundido com um embaixador, a baiana do receptivo, com um imponente vestido amarelo sustentado por anágua, poderia ser uma sacerdotisa do Benin.

As cenas de três dias no Centro de Convenções emularam o caráter de fórum de diálogos culturais e sociopolíticos da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora para transformar o encontro também num caldeirão de "alteridade". Se a língua fosse única, todos passariam por vizinhos de um mesmo edifício, um condomínio étnico intercontinental. Nos auditórios, o mimetismo simbólico, nas conversas, a simbiose de figurinos e idéias.

"Aqui, eu me sinto em casa", avisa a militante Maria Josefina, com seu turbante bicolor na cabeça e um pano-da-costa no ombro. E a frase dela parece totalmente paradoxal, ao saber que se trata de uma baiana de Salvador, residente a poucos quilômetros do Centro de Convenções e não uma visitante da Guiné Equatorial. E ali, no meio de estranhos de outro continente, falando francês, inglês, espanhol ou um português truncado, ela garante estar mais à vontade do que na fila de um Multiplex da própria cidade.

"Eu estou me sentindo totalmente adaptada com o calor humano. Sinto-me em casa", confessa a pesquisadora Magdeline Tepire, em apenas cinco dias na capital baiana, desde a chegada de Botswana. Chega-se à conclusão que o Atlântico não é um oceano separando dois continentes. É um espelho refletindo dois rostos da mesma cultura.

Transitando por estandes de divulgação de trabalhos e exposição de obras literárias, a jornalista Wanda Chase retoma os laços da luta do movimento negro. Reencontra amigos, estabelece novos contatos, monta, na própria cabeça, uma reportagem sobre estilos e demandas culturais. "É muito visível a identificação com os códigos de comunicação, os problemas comuns, os ideais também", pondera ela, perguntada se também acha todo mundo muito parecido, numa inquietante sensação de parentesco. "Só o idioma cria alguma diferença".

No elevador parcialmente ocupado, o também jornalista Paulo Rogério Nunes, integrante do Instituto de Mídia Étnica, elogia a beleza da roupa de uma namibiana, vestida com turbante, colares e muita pompa. Com um sorriso de cumplicidade, ela responde: "A vestimenta é igual a de vocês, baianos". "Impressionante isso de uma mulher nascida num país que era antiga possessão alemã se identificar com a cultura da Bahia", reflete Nunes.

Só que ele não se ilude sobre esse tipo de postura. Sabe que, no Gabão, a maioria das pessoas vai para o trabalho com calça jeans, ou terno, e na Jamaica é a minoria que mantém dreadlocks no cabelo. "Mas usar uma roupa típica num evento desse tipo é uma espécie de resistência, de reafirmação africana", alega.

***

Zona livre de fronteiras

Já estamos no quarto andar do Centro de Convenções e uma mostra do projeto Olhares Cruzados, retratando imagens, cartas, pinturas e brinquedos produzidos por crianças para promover conhecimento e solidariedade entre Brasil, Angola, Moçambique, Senegal e Haiti faz uma coroação de tudo o que é visto e dito naquela zona livre de fronteiras. São fotografias que anulam diferenças, imagens do estrangeiro que provocam uma sensação de déjàvu. Cabinda é mais carioca do que o Rio de Janeiro, Maputo é mais senegalesa do que Dacar, Porto Príncipe é mais baiana do que Salvador.

Com os fios grisalhos tomando conta do cabelo rastafari, o livreiro Papaléguas trabalha apenas com obras que tratem da questão étnica, apesar de achar que o próprio conceito de livraria tem que ser universal, sem limites de tema, autor ou editora. "Mas a demanda para os assuntos da negritude é grande e ignorada pelos estabelecimentos tradicionais", justifica. Do seu estande amontoado de livros, o maranhense radicado no Rio de Janeiro desde 1973 percebeu que a vida que passava ali em frente tinha uma unidade, no visual e na filosofia. "A roupa é o principal signo, mas quase tudo é semelhança dentro da diversidade", filosofa.

Na fila para os salgadinhos do coquetel, a dúvida sobre uma origem: "Você é de onde?", questiona o vizinho na fila. "Sou colombiana", responde a mais nova amiga daquele produtor cultural baiano, mostrando um belo sorriso no rosto claro, emoldurado por cabelos pretos ligeiramente cacheados. Ela também está à vontade. São iguais nas preferências e nos elogios gastronômicos. "Esses petit-fours estão uma delícia". "É mesmo, mas um acarajé seria bem melhor". "Também acho". E ponto final.

***

Diálogo orienta práticas futuras

"Nascerá uma nova identidade afro global, capaz de consolidar uma cultura negra globalizada", preconizou o ministro da Cultura Gilberto Gil, na abertura da plenária que pretendia debater a elaboração de um pacto entre África e Diáspora para paz democracia e desenvolvimento. Destacando o papel de países da diáspora, que, como o Brasil, são herdeiros da cultura e lutas protagonizadas pela população do continente africano, o ministro defendeu uma rede de solidariedade e desenvolvimento. "Depois de tantas lutas e guerra, é preciso estabelecer um novo relacionamento econômico com o mundo globalizado".

Em resposta à prática escravocrata que considera etnocida e genocida, Gil apostou que o caminho para o desenvolvimento africano é a união entre entre os países da diáspora e a constituição de uma rede de instituições de ensino, pesquisa e cultura. "O desafio é conseguirmos implementar uma rede mundial de comunicação "afrodiaspórica" capaz de intervir como elemento ativo de pressão africana", defendeu o ministro, argumentando que independente do conteúdo da declaração de Salvador, a Ciad já cumpriu seu papel. "A finalidade de um evento como este se cumpre em estarmos aqui conversando. O diálogo vai orientar as práticas futuras, sejam elas quais forem", defendendo a conferência como um espaço teórico que vai dar aos governos interessados em contribuir com as questões africanas irão se incubir de efetivar as medidas possíveis.

Na avaliação da queniana Wangari Maatahia, prêmio Nobel da Paz em 2002, a preocupação com o meio ambiente é fundamental para o renascimento da África e conquista da paz mundial. "Acredito que a nossa existência no planeta depende do meio ambiente. Se partilharmos e administrarmos com mais democracia e respeito estes recursos, alcançaremos a paz", disse Maatahia. Considerando a Amazônia o ecossistema mais importante do mundo, a ativista ambiental convocou as pessoas a terem uma participação mais ativa exigindo uma distribuição mais ética e democrática dos recursos naturais.

Destacando o papel dos intelectuais e da sociedade organizada, a co-presidente da II Ciad, a sul-africana Frene Ginwala, destacou a necessidade de suporte e recursos internacionais para que a União Africana consiga concretizar a paz. "Nós, intelectuais e membros da sociedade, não podemos nos esquivar desta responsabilidade. Todos nós temos que participar deste processo de mudança".

***

Movimentos sociais protestam

Por Perla Ribeiro

A riqueza das discussões foram de um valor inestimável. Mas para parcela do público que participou da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad) ficou um vazio. Nas mesas temáticas, tiveram eco somente as vozes de chefes de estado, pesquisadores e autoridades de um modo em geral. No espaço em que um dos principais temas eram as políticas de inclusão, representantes dos movimentos sociais e da sociedade civil foram excluídos do papel de protagonistas. Coube a eles um lugar na platéia, onde ouviam as discussões e tinham o poder da fala restrito. Em cada mesa temática, por exemplo, só eram permitidos até cinco integrantes do público se pronunciar.

O próprio nome do evento deixa claro que é um espaço de intelectuais. Mas aí vem o questionamento: só são apreciados os intelectuais letrados? Infelizmente a experiência de vida daqueles que convivem nos guetos negros e conhecem a fundo a realidade e agruras que sofrem os negros ficaram de fora das discussões. "Durante todo o evento, não tivemos voz. Para nós ficou reservado o Fórum Social, que acontece amanhã (hoje). Acho que a ausência da sociedade civil nas mesas deixou algumas discussões muito elitizadas. Só tivemos o olhar que vem de cima", avaliou a presidente da ONG Grupo Multiétnico de Empreendedores Sociais Sociais, de Brasília, Nilda Correa.

Compartilha da mesma posição a integrante do Coletivo Negro de Brasília, Lia Maria Santos. Para ela, é triste ver que, em um evento com esta dimensão a intelectualidade dos movimentos sociais foi excluída. "Nos debates temos sentido a ausência da construção de falas daqueles que são protagonistas dos nossos anseios. O diálogo que está acontecendo aqui é de chefes de estado e todo mundo sabe que rico não ajuda pobre. Quem está preocupado com ações afirmativas são os movimentos negros e sociais", considerou a militante.

Mesmo sem a garantia de que teriam atenção das autoridades, um grupo da comunidade remanescente de quilombo de São Francisco do Paraguaçu, em Cachoeira, foram ao local reivindicar segurança. Portando uma faixa informando que a comunidade estava sendo agredida pela polícia, eles voltaram para casa sem muitas perspectivas. Eles também aguardaram em vão a reunião que a ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, marcou com os movimentos negros e não compareceu.

Composta por 320 famílias, a comunidade quilombola foi agredida anteontem pela força policial. "Por volta das 3h, chegaram três viaturas com policiais, todos armados. Eles ficaram o dia todo na comunidade e invadiram residências e danificaram nossos bens", informou o coordenador da Associação dos Remanescentes de Quilombo São Francisco do Paraguaçu, Anselmo Ferreira. Diante de tantas questões sendo discutidas, a denúncia dos quilombolas passou despercebida diante da II Ciad, reforçando o olhar daqueles que criticaram a falta de espaço para os movimentos sociais. Para o professor da Universidade Estadual da Bahia, Carlos Alberto Francisco, coube aos movimentos sociais e à sociedade civil um mero espaço na platéia, sem direito de decisão.

Aqui Salvador, Correio da Bahia, 15.06.2006 - www.correiodabahia.com.br

No comments: