Friday, July 14, 2006


Herança perversa
Intelectuais articulam estratégia de reparação


Africanos defendem políticas internacionais de combate à desigualdade

O ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, não imaginou que fosse causar tanta polêmica, ontem, em uma das 24 mesas-redondas da II Conferência Internacional de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), realizada simultaneamente no Centro de Convenções e nas universidades do Estado da Bahia (Uneb) e Federal da Bahia. Mas o que parecia um detalhe em seu discurso, de contados 15 minutos, despertou indignação na platéia no debate sobre as desigualdades sociais. O ministro esqueceu de uma correlação óbvia - pobreza no Brasil tem a ver com questão racial. Não é para menos. A herança do processo histórico de escravidão até hoje se reflete nos índices apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que integram a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2004 - 68,47% dos pobres brasileiros são negros.

De nada adiantaram as explicações do ministro, que justificou a ausência de indicadores raciais na sua explanação, alegando o tempo curto que lhe foi concedido. "Precisamos abordar esta questão racial para enfrentar o problema da pobreza, onde quer que a gente vá no mundo, seja Estados Unidos, Austrália, a história sempre se repete, ao vermos os negros vivendo nos bolsões de miséria", defende o secretário geral do Conselho para Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África, o nigeriano Adebayo Olukoshi, associando o sistema escravocrata e o colonialismo à origem da condenação do negro ao estado de miséria.

Os palestrantes africanos de países como Guiné, Etiópia, Zâmbia e Nigéria tinham ainda outra reclamação. "Essas pessoas que convivem com a pobreza no dia a dia têm visão diferente da dos intelectuais e deveriam estar aqui na mesa", considerou o historiador de Guiné Alpha Condé, referindo-se à falta de representantes da sociedade civil no debate.

De qualquer modo, apesar da distração do ministro, que não mencionou a questão racial na sua fala, a série de ações governamentais para erradicação das desigualdades e da desnutrição no país, a exemplo dos programas Fome Zero e Bolsa-família, converge com a visão dos intelectuais africanos sobre a estratégia de combate à pobreza na África e nos países da diáspora. Os intelectuais africanos presentes no evento defendem independência na aplicação dos recursos concedidos por entidades financeiras internacionais e fim das barreiras tarifárias, para que os países pobres tenham maiores chances de competir no mercado global. "A qualidade de vida do negro melhorou ao longo dos anos, mas ainda não é o suficiente, por isso a questão do racismo ainda é relevante", pontuou Kinfe Abrah, presidente do Instituto Etíope para a Paz e Desenvolvimento.

Destacando que muitas famílias pobres e afrodescendentes, que vivem em áreas remanescentes de quilombos estão sendo beneficiadas pelos programas de governo, o ministro Patrus Ananias citou a inclusão no cadastro de benefícios de 1.500 famílias de quilombolas da região de Alcântara, no Maranhão, no ano passado. "Agora em 2006, 20 mil famílias de quilombolas de sete estados, incluindo a Bahia, foram contempladas", acrescentou o ministro que estima que o governo tenha investido ainda mais R$5,5 milhões de recursos para programas de inclusão produtiva a favor de outras 150 comunidades quilombolas espalhadas pelo país. "Não tenho a pretensão de dizer que estamos com a consciência tranqüila, mas estamos fazendo o que é possível com os recursos que temos. O desafio é ainda grande para que todos os brasileiros tenham assegurados os direitos básicos", reconheceu o ministro. "Temos que continuar unindo esforços para vencer a pobreza no Brasil, na América Latina, África e países da diáspora".

Questões históricas, como a retirada compulsória dos negros do seu país de origem e a exploração do continente africano pelas potências colonialistas foram apontadas como raiz do problema que faz da África hoje um país também marcado por profundas desigualdades. Enquanto a população do Gabão tem índice per capita de US$5.766, países como Burundi, onde a guerra civil é intensa, a renda de cada habitante não ultrapassa US$160 por ano. Com 53% da população analfabeta, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Burundi é de 0,31 de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado pela Universidade de Oxford em 2001.

Em ano eleitoral, Patrus Ananias não perdeu a oportunidade de divulgar as ações sociais do governo brasileiro. Ele destacou os projetos idealizados por Lula que, segundo dados do governo, tiraram da linha de extrema pobreza cerca de sete milhões de brasileiros. E destacou que o grande compromisso do governo Lula e do seu ministério é acabar com a fome no país. "Atualmente, a transferência de recursos do Bolsa-família beneficia 11,1 milhões de famílias", cita o ministro em defesa da política tida por muitos como assistencialista, que beneficia 40 milhões de brasileiros que viviam num dos 5.654 municípios do país com renda per capita inferior a R$60 ou US$28.

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NÚMEROS

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que integram a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2004, dos 39,54 milhões de brasileiros que vivem em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, 27,07 milhões são de cor parda ou negra. Ou seja, 68,47% dos pobres brasileiros são negros. Na Bahia, estado mais negro do Brasil, dos 4,97 milhões de pessoas que não conseguem ter, no mínimo, as três refeições diárias garantidas, 4,28 milhões são pretos e pardos, o que corresponde a 86,15%. "Analisando o índice do Brasil, que tem a população de maior incidência branca, você vê claramente que na hora da fome quem mais sofre são os pretos e pardos", contextualiza Joilson Rodrigues, chefe do setor de informações do IBGE.

Embaixadores africanos visitam Ilê Axé Opô Afonjá
Ministro da Cultura, Gilberto Gil, apresenta terreiro de mãe Stella de Oxóssi a estrangeiros
Pablo Reis

Representantes de governos africanos percorreram as dependências do terreiro

Guiada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, uma comitiva com embaixadores de países do Gabão e do Suriname, além de intelectuais africanos, artistas e estudiosos estrangeiros do candomblé, foi recebida por mãe Stella de Oxóssi no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro. Os visitantes conheceram o terreiro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e elogiaram o museu da entidade, com um acervo de instrumentos religiosos e imagens sagradas e o centro de tecelagem de panos-da-costa. Um trecho do documentário Axé do acarajé, do cineasta Pola Ribeiro, também foi exibido para os convidados.

Obá de Xangô, iniciado por mãe Stella, Gilberto Gil chegou ao local com uma hora de atraso e aparência de cansaço. Foi recebido pela ialorixá com uma frase de boas vindas: "Tá em casa, né?". Gil pediu licença aos repórteres e, em um dos cômodos da Casa de Xangô, recebeu a bênção do orixá reservadamente. Saiu do quarto demonstrando satisfação de estar no local. "Esses encontros são importantes para reavivar os laços que unem os de lá e os daqui. Essa casa tem um papel importante na ligação com a África", explicou o ministro.

A vice-ministra de Relações Exteriores do Gabão, Laure Goudjout, a embaixadora do Suriname, e o historiador nigeriano da Universidade do Texas Totin Faloula foram os integrantes da comitiva mais interessados nas origens do terreiro. Mas quem roubou a cena foi a cantora Angelique Kidjo, do Benin, que tem ligações familiares com o candomblé. Ela é sobrinha do falecido babalorixá Dhagbo Hounon, o primeiro do Benin a fazer trabalhos para Iemanjá. Angelique dançou ao som dos atabaques tocados por ogãs e da música cantada pelas ekedis: Opô Afonjá Arewá.

Depois de uma rápida conversa traduzida por Gil, a artista ficou sabendo que o tio conhecera mãe Stella e que tinha visitado o Opô Afonjá na década de 80. Ela demonstrou interesse especial no acervo do museu, cujo prédio foi inaugurado em 1999 e apresenta itens utilizados nos cultos, fotos históricas, roupas tradicionais e imagens de orixás. "Eu sinto minhas raízes e a conexão. Estou orgulhosa porque a Bahia me mostra como é forte essa cultura", exaltou Angelique.

A comitiva assistiu também a 15 minutos do documentário Axé do acarajé, do cineasta Pola Ribeiro, patrocinado pela Fundação Cultural Palmares e pelo Ministério da Cultura. O filme de uma hora mostra como o bolinho feito com feijão fradinho está relacionado aos cultos do candomblé. A platéia, composta por 150 pessoas, foi completada pelos membros da comunidade. "Para mim é gratificante receber esses convidados na minha casa", ressaltou mãe Stella. "A fé está no mesmo naipe entre africanos e brasileiros".

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África deve redefinir posições

Por Perla Ribeiro

É utilizando as fronteiras importantes que tem fora do continente que a África deve redefinir sua posição no mundo. A declaração é do ministro da Cultura, Gilberto Gil, que concedeu coletiva ontem à tarde para falar sobre as discussões que têm sido travadas durante a II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad). Para o ministro, o atual momento representa uma nova era da África com os povos do ocidente. Para alçar vôos mais altos, ele diz que é fundamental que haja um grande esforço do continente, especialmente por parte dos países que já atingiram um estágio mínimo de desenvolvimento.

"Isso depende muito do diálogo que a África tem com as suas diásporas. O mundo todo tem consciência de que é esse reatamento de relações com os povos africanos que vai dar ao continente condições de enfrentamento aos problemas residuais do colonialismo, tirá-lo dessa fronteira isolada que é hoje", avalia o ministro da Cultura, que preside a II Ciad. Quanto ao papel do Brasil nesse processo, ele diz que o país tem colaborado no campo das relações comerciais, na educação e na saúde.

"Estamos fazendo uma série de coisas, mas isso não é inédito na política brasileira, só demos uma intensificada. Uma grande ajuda é na questão do programa de combate à Aids. Além de oferecer nossas tecnologias, temos defendido a quebra das patentes para fabricação de medicação", informou. Na oportunidade, Gil lamentou que nem todas as autoridades esperadas puderam estar presentes, a exemplo do líder político sul-africano Nelson Mandela, que cancelou a participação alegando problemas de saúde.

Questionado sobre a importância do Estatuto da Igualdade Racial, ainda em tramitação no Congresso, Gil disse que é um instrumento que vai na direção das políticas afirmativas do governo federal e cita como exemplo a criação da Secretaria para a Promoção da Igualdade Racial. "Ela traduz uma marca legal dos brasileiros, que é o desejo de boa parte da população de ver uma sociedade mais igualitária do ponto de vista étnico e social", considerou. Já no quesito cotas, ele reafirma seu posicionamento favorável à política de reparação.

Assim como outros debatedores, o ministro também reforçou a posição de desvantagem do negro com relação ao branco. Segundo ele, os números comprovam que em igualdade de competição com outros grupos étnicos o negro tem desvantagem no acesso ao mercado de trabalho, à saúde e à educação. "O racismo ainda existe muito forte e é por isso que têm que ser instituídas políticas públicas e ações afirmativas. São ações que visam estabelecer uma sociedade pautada na igualdade", afirma.

Quanto ao teor da carta que estava prevista para ser lançada ao final da conferência, apresentado um resumo dos principais itens que nortearam as discussões, o ministro informou que não foi confirmado ainda se este documento existirá. Entretanto, ele diz que, embora o documento seja importante, uma das maiores contribuições do evento é com relação ao intercâmbio de experiências e projetos que são trocados ali.

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Advogados têm encontro paralelo

Por Fernanda Carvalho

Em paralelo à II Conferência Internacional de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), a Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (Anaad) promoveu, durante todo o dia de ontem, o I Encontro de Advogados Negros na Diáspora. O objetivo do evento, realizado no Hotel Tropical da Bahia com apoio da Fundação Palmares, é refletir sobre o papel dos operadores do direito no combate à discriminação racial.

A Anaad tem hoje 70 profissionais filiados e comprometidos com o ideal de desempenhar o papel jurídico frente às causas da raça negra. Ao longo dos cinco anos de existência, a associação acompanhou a abertura de cerca de 50 processos movidos por pessoas que se sentem lesadas e desrespeitadas com a discriminação racial. "O racismo aqui na Bahia acontece principalmente em bancos, lojas, universidades e escolas", avalia a presidente da entidade Silvia Cerqueira, que considera como maior vitória da associação o processo de conscientização e esclarecimento que vem sendo feito junto à população. "Este trabalho tem feito com que as pessoas reivindiquem mais seu direito".

A situação dos imigrantes africanos que chegam ao estado em situação irregular é outra preocupação da Anaad, que vem lutando para renovar com o governo federal o projeto humanístico de assistência jurídica a imigrantes negros que partem da África em direção ao Brasil fugidos da guerra civil ou em busca de melhor condição de vida. Somente no ano passado, advogados da Anaad acompanharam oito casos de imigrantes africanos em situação irregular. Além de advogados capacitados a acompanhar os imigrantes negros, o projeto inclui o trabalho de psicólogos e tradutores. "Muitos chegam aqui sem falar português, o que dificulta a busca por ajuda".

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Incontáveis discussões raciais

No discurso todos sabem que racismo é crime inafiançável, ainda assim está para existir um negro que nunca sentiu na pele o que é ser vítima do preconceito racial. A questão é histórica e alvo de incontáveis discussões. No momento, a certeza é de que não há uma solução possível a curto prazo. Mas é possível mudar as armas de luta. As trincheiras que estavam voltadas para o combate do racismo individual agora atacam o racismo institucional. O assunto foi discutido ontem, durante a plenária O combate ao racismo, à xenofobia e outras formas de discriminação: Durban + 5, que contou com a participação da ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, e estudiosos do continente africano.

"A construção da igualdade passa por observações do cotidiano. Se você circular pelas ruas de Salvador irá encontrar negros. O mesmo se repete nas ruas de São Paulo. Mas quando muda o cenário para uma reunião de negócios você constata que eles não estão lá. Este é um dos retratos de que os negros continuam fora dos espaços de decisão", avalia a ministra. Ainda segundo ela, só haverá a superação do racismo a partir de uma revisão histórica. Curioso é ouvir dos próprios representantes dos países africanos que até no próprio continente este racismo é visível.

Diretor executivo da Faculdade de Direito da Universidade Independente de Angola, o angolano João Pinto disse estar surpreso com a dimensão que tem a discussão sobre o racismo no Brasil. Embora mais de 90% dos 13 milhões de habitantes de Angola sejam negros, segundo ele, o debate em torno do tema é visto como tabu. "Convivemos com um problema de racismo, só que ele não é discutido abertamente. Até a independência, a nossa luta era do colonizado contra o colonizador. Com a independência, a situação agora é outra. Nós não temos essa consciência nítida que vocês têm da negritude. Falar em negritude é tabu em algumas circunstâncias", informou João Pinto, explicando que, apesar de não ser declarado, o racismo existe no país.

Essa negação da identidade também fica refletida com a importação do modelo cultural europeu, em detrimento da cultura africana. Durante as discussões, os angolanos mostram-se orgulhosos pelo fato de o lugar para onde vieram seus ancestrais escravizados manter ainda tão vivos os traços desta cultura. "É um processo de auto-exclusão. Nós vamos aprender convosco os valores de unidade e coesão africana, porque durante décadas nos dispersamos envolvidos em conflitos étnicos", disse o angolano.

Já o secretário geral do Reencontro Africano dos Direitos do Homem, Alioune Tine, reforçando as palavras da ministra Matilde Ribeiro, também chamou a atenção para a necessidade de despertar a consciência de luta contra o racismo. "É necessário que todos os países se unam porque quando um país negro é injustiçado todos o são. A colonização e o mercado escravo foram verdadeiros crimes barbáros contra a humanidade. Assistimos hoje a um racismo mais forte do que nunca na Europa", pontuou Tine.

Na platéia, atento às discussões, o ator Antônio Pitanga disse que, quando se fala em racismo, não se deve pensar individualmente dentro da luta da raça negra, mas sim, na coletividade. "Liberdade não se ganha, se conquista e até que o negro consiga garantir o seu espaço tem uma luta feroz pela frente, uma luta de Davi contra Golias", avalia. (PR).

Aqui Salvador, Correio da Bahia, 14.06.2006 - www.correiodabahia.com.br

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