Saturday, July 15, 2006

Manifestantes invadem plenária e fazem rebuliço na Ciad

Manifestantes invadem plenária e fazem rebuliço na Ciad
Militantes do movimento negro surpreendem intelectuais e reivindicam, aos gritos, políticas de reparação
Fernanda Carvalho

O ato público mudou o cenário acadêmico da conferência internacional

Quebrando todo o protocolo previsto para o dia de encerramento da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora (Ciad), um grito a favor das políticas afirmativas e da garantia de ingresso de afrodescendentes nas universidades do país se fez ouvir no auditório Yemanjá, no Centro de Convenções da Bahia. Depois de quase duas horas de plenária discutindo A necessidade de um pacto político entre África e diáspora para paz, democracia e desenvolvimento, a explanação do ministro da Cultura, Gilberto Gil, e dos demais intelectuais internacionais que compunham a mesa foi interrompida por um protesto organizado pelo movimento negro brasileiro.

Com faixas vermelhas, manifestantes de diferentes estados interromperam a conferência ao fazer ecoar palavras de ordem, a exemplo de "Cotas raciais já". Com cerca de 80 integrantes, o ato foi ganhando adesão nos corredores do auditório. Quando os gritos já tornavam impossível a continuidade dos trabalhos, dois representantes do movimento subiram ao palco para leitura de um manifesto que vinha sendo elaborado desde o último dia 12, abertura da Ciad. O documento, além de defender a aprovação da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial, defendia a instituição do dia 18 de agosto como Dia Nacional de Mobilização em Defesa das Cotas.

No grito - Baseados nos dados do Ipea que comprovam que, no Brasil, por quatro gerações ininterruptas pretos e pardos têm menos acesso à escolaridade, saúde, emprego, além de viver com baixos salários e piores condições de moradia, o movimento negro, que até então não vinha tendo espaço para debater a solução dos problemas raciais históricos do Brasil na Ciad, no grito, conseguiu dar visibilidade à luta a favor das cotas. Dois dos manifestantes que subiram ao palco, diante da extensa mesa de intelectuais, leram na íntegra o manifesto que considerava que, sendo o Brasil a segunda maior população negra do planeta, a lei de cotas deve ser compreendida como uma resposta de reparação do estado brasileiro.

"O sistema acadêmico brasileiro exemplifica um dos quadros de exclusão racial no ensino superior mais extremos do mundo. A porcentagem média de docentes negros nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6% da população", leu o sociólogo do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), Agnaldo Neiva, um dos líderes do ato.

O desempenho dos cotistas que, nos últimos quatro anos, foram beneficiados pelas mais de 30 universidades brasileiras, entre públicas e particulares, que aderiram às cotas, foi outro argumento utilizado. "Todos os estudos que dispomos já nos permitem afirmar com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal", considerando que a política de cotas vem contribuindo para combater a discriminação racial no meio universitário.

Sob aplausos, os manifestantes sensibilizaram a platéia de brasileiros e estrangeiros a cantar o hino da África. A manifestação, curta mais intensa, foi encerrada a pedido dos integrantes da mesa para que as atividades fossem retomadas. Visivelmente surpreso com o episódio, o ministro Gilberto Gil deixou a mesa sem fazer comentários com a imprensa. "Não tenho tempo", esquivou-se de entrevistas, prometendo falar à tarde.

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Leci Brandão faz apelo

"Que o Brasil aprove as cotas nas universidades". O apelo da cantora Leci Brandão, aplaudida de pé pelo público que acompanhava, na manhã de ontem, a plenária da Ciad, antecedeu a manifestação do movimento negro. Convidada pelo ministro Gilberto Gil a compor a mesa em companhia do integrante do movimento Rip Rop Marcão, a cantora brasileira não deixou a perder oportunidade de dar depoimento tão emocionante quanto o do cantor americano Steve Wonder, que abriu a conferência.

Após pedir bênção às pessoas de matrizes africanas presentes no evento, a cantora creditou a realização do evento à mudança de governo brasileiro. "Pela primeira vez, estou vendo os negros efetivamente no poder", ressaltou, partilhando sua difícil trajetória de mulher negra carente e de cantora estigmatizada por levar em suas composições a voz das minorias. "Estudei em escola pública e já varri muita sala de aula. Por isso, canto até hoje pelas minorias, pelo negro, índio, homossexual", disse, confessando que até pouco tempo não sabia o que significava diáspora africana, até que uma escola de samba de são Paulo transformou a diáspora em tema de um samba-enredo.

Ao descer do palco, após abraçar emocionada a ialorixá Mae Beata, do terreiro Ilê Omin Ojuakô, do Rio de Janeiro, Leci Brandão disse perceber na mídia uma grande resistência à aprovação das cotas. "Os negros continuam ganhando cota nas cadeias, no índice de desemprego? Queremos vencer as cotas é nas universidades", clamou, considerando que o direito ao saber deveria ser garantido a todo ser humano.

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Cotistas têm bom desempenho

Por Cilene Brito

O desempenho dos alunos que ingressaram na Universidade Federal da Bahia (Ufba) através do sistema de cotas, no ano passado, foi considerado um dos melhores da instituição. Em 32 dos 57 cursos oferecidos pela universidade (56%), os cotistas obtiveram coeficiente de rendimento igual ou melhor que os não-cotistas. Os dados referentes ao ano letivo de 2005 fazem parte de um levantamento preparado pela Reitoria da universidade e foi divulgado, ontem, pelo reitor Naomar de Almeida Filho, durante coletiva.

O relatório apontou também que em 11 dos 18 cursos de maior concorrência (61%), os cotistas tiveram rendimento igual ou superior que os não-cotistas. Os coeficientes de rendimentos foram avaliados a partir da média das notas, entre 5,1 e 10, dos estudantes de cada turma. Nos cursos mais concorridos e considerados de maior grau de dificuldade, o melhor desempenho dos cotistas foi observado nos cursos de jornalismo, produção cultural e fonoaudiologia, com rendimento de 100%, contra 87,5% e 88,9%, respectivamente dos não-cotistas.

Os cotistas também apresentaram melhor desempenho no curso de medicina (93,3% contra 84,6%), direito (95,2% contra 88,9%) e engenharia civil (94,1% contra 80%). No curso de odontologia houve empate, com 100% de aproveitamento de ambos. Já os não-cotistas obtiveram melhor rendimento nos cursos de psicologia (100% contra 77,8%), engenharia mecânica (100% contra 75%), entre ou-tros. Em 18 dos 30 cursos que, antes do sistema de cotas, tinham uma taxa de participação de alunos oriundos da escola pública menor que 30% ou 60%, um número maior de cotistas obtiveram coeficiente de rendimento igual ou maior que 7,5.

Para o reitor Naomar de Almeida Filho, isso mostra que os estudantes que ingressaram na universidade através do sistema de cotas não estão em nível de conhecimento muito inferior aos candidatos aprovados pelo sistema tradicional. "Foi um achado inesperado para muita gente que acreditava que a qualidade da universidade seria prejudicada com a entrada dos cotistas. Muitos disseram que os alunos egressos das escolas públicas não teriam condições de acompanhar o ritmo da universidade. Os que entraram pelas cotas são os melhores das escolas e estão aproveitando a oportunidade que lhe foi dada", disse.

A Ufba implementou o sistema de cotas baseada numa combinação de critérios raciais e sociais, numa iniciativa de ampliação do acesso ao ensino superior aos setores excluídos da universidade. No vestibular de 2005, ingressaram 1.350 estudantes através do sistema de cotas, ou seja, 45% das três mil vagas oferecidas. De acordo com o pró-reitor de graduação, Maerbal Marinho, antes das cotas, a universidade tinha 38,9% de alunos oriundos de escolas públicas. Após a implantação das cotas, o percentual subiu para 48%. "A tendência é que este percentual cresça nos próximos anos. Antes das cotas, a participação desses alunos em alguns cursos não era superior a 10%", salientou.

Para o diretor do Centro de Estudos Afro-Ocidentais (Ceao), Jocélio dos Santos, o resultado revela que embora exista um preconceito em relação à qualidade de ensino das escolas públicas, há alunos com grande potencial. "O modelo de ações afirmativas foi criado para selecionar os melhores. Eles tiveram a oportunidade de mostrar o seu potencial. Isso reforça a idéia de que há talentos dentro do ensino público e entre as classes mais baixas", disse.


Aqui Salvador, Correio daBahia, 15.06.2006 - www.correiodabahia.com.br

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