Monday, October 16, 2006

A chacina “nossa” de cada dia

70 % dos Jovens Assassinados são Negros.
A chacina “nossa” de cada dia

Deise Benedito*

Isso é inaceitável em todas as esferas dos governos deste País que vão assumir suas “cadeiras” no dia 1 de janeiro de 2007. A população negra e indígena, como indivíduos ou cidadãos, não pode ter como projeto de vida o extermínio, real ou simbólico!


O que pode transcender a indignação da população brasileira, da sociedade paulista? Saiu na Folha de São Paulo, e daí? Uma pergunta sem resposta que fica no ar. Quando a Folha traz os dados e os comentários de que mais de 70% dos jovens assassinados são negros, um silêncio ensurdecedor se faz ouvir.

A tranqüilidade com que se assiste à chacina “nossa” de cada dia, não causa nenhum sentimento de horror! A banalização da vida, por seguimentos da sociedade paulista, preocupada com a segurança pública, com o aumento da violência, com a insegurança em que se vive nos grandes centros urbanos... tudo isso aliado à ausência de ética, faz com que não seja dada qualquer atenção quando o número de jovens negros vítimas de homicídio inflacionam as estatísticas de mortalidade no Brasil.

Essa chacina, em sua maioria, é praticada por grupos de extermínio que se encarregam de executar a sentença ora já pronunciada por seguimentos da sociedade que – através de seu silêncio – legitimam a prática desses assassinatos com algo de “natural”. Afinal, no jargão popular, herança dos anos 1970: bandido bom é bandido morto!

Se, por um lado, o homicídio demonstra o limite máximo da exacerbação de conflitos nas relações interpessoais, no caso dos homicídios ocorridos por fatores externos que têm como alvo preferencial os jovens negros, isto não é considerado como uma “exacerbação”, nem tão pouco um “fenômeno”! O grande fenômeno na sociedade atual é um jovem negro completar 30 anos vivo!

Vivo! Uma vez que esse jovem faz parte do seguimento “que deve ser” eliminado, por não ser considerado necessário para o bem comum e para o desenvolvimento de uma sociedade que busca certo “padrão de perfeição e excelência”.

Ao entrarmos nas estações do metrô, em São Paulo, ao nos dirigirmos aos caixas para adquirir o bilhete, nos defrontamos com cartazes, como em uma “Exposição”, com até 10 fotos de jovens – em sua maioria, negros – que estão sendo “procurados” pela polícia: “Se você conhece um destes rostos ligue para 181”.Sua denuncia será mantida em absoluto sigilo”

Esses cartazes é uma das formas encontradas pelo Estado para cumprir com o seu dever de proteger o “cidadão de bem”! Veja aí: você paga seus impostos e nós cumprimos com nosso papel!!! Para isso, são feitas abordagens policiais, no cotidiano das grandes cidades, onde o alvo são os jovens negros demonstrados num “espetáculo” de “captura de escravo fugido”, muitas vezes sendo algemados, enquanto a população assiste inerte (ou orgulhosa) o exercício desmedido da autoridade policial!

Em São Paulo, a colocação de câmeras fotográficas nos faróis nos grandes cruzamentos das ruas centrais da cidade, para além de vigiar os corpos errantes – no clima de espionagem e suspeita de todos sobre todos – sob a égide da necessidade de proteção e mais segurança, marca o dia-a-dia de milhões de paulistanos, controlando a “massa” da população negra considerada supérflua; considerada neutra e indiferente; desprovida de valores civilizatórios; considerada desorganizada, sem nenhum valor agregado! Essa “massa” é composta por jovens negros que desafiam o cotidiano mantendo-se vivos, uma vez não têm ocupação, trabalho, residência fixa, nem tão pouco carteira assinada (estigma da “carta de alforria”, “passaporte do apartheid brasileiro”)!

Esse estado de perversão, que não herda os costumes e padrões da elite paulista quatrocentona, não causa qualquer perplexidade quando esses jovens são “as” vítimas do extermínio físico, social, cultural e moral.

É importante considerar que a palavra “genocídio” da população negra e jovem, significa o extermínio de coletividades étnicas (“geno”, raça; “cidium”, matança, assassinato). Sabemos que o genocídio consta da área do Direito como um crime de natureza internacional. Conforme a Convenção de 11 de dezembro de 1946: “Genocídio é qualquer ato ... mencionado e praticado com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional étnico racial ou religioso enquanto tal: morte dos membros do grupo, lesão grave à integridade física ou mental dos membros do grupo, sujeição intencional do grupo a condições de vida que hajam de acarretar a destruição física total ou parcial, entre outras”.

Já “extermínio” é mais ambíguo que o termo “genocídio”, pois não aparece nas Convenções de Direito Internacional, ou mesmo Nacional. Vemos que até os dicionários omitem ou simplificam: “extermínio”: ato de eliminar com morte, banir; segundo a enciclopédia Universal.

Concluo que o número elevado de assassinatos de jovens negros, em todo o país, faz parte de um projeto político de grupos que se arrogam o direito e o poder de selecionar os que devem viver e os que devem deixar de existir; o possível e o impossível. O extermínio define a sociedade entre os “bem feitores” (aqueles que executam as sentenças, uma vez que têm como agravante a cor da pele). Isso fica evidente quando não vemos tais índices de crescimento de homicídios por causas externas nas regiões “nobres” de São Paulo!

A abordagem policial em bairros como Jardim Ipê, Ângela, Luso, Embu, Cidade Tiradentes, não segue a mesma metodologia que a aplicada nos bairros de Jardins, Morumbi, Itaim, Alfaville, uma vez que o público dalí não é jovem nem tão pouco negro; ao contrário, é uma população que paga altos custos pela “segurança”, em seu condomínio fechado! Seguranças particulares, carros blindados a toda prova...

A “limpeza étnica” que está sendo “oferecida” ao país, por ações de grupos de extermínio, é administrada e mantida por um poder centralizador, imune à punição e motivado pela purificação da raça! E o que estão tentando é construir um novo momento histórico pela eliminação das “massas” supérfluas, para promover o “bem” da coletividade!

O sacrifício da “parte”, em favor do “todo”! O extermínio é sistemático, sem levar em conta o porquê das condições péssimas em que foram colocados os moradores das favelas, dos cortiços em áreas de risco; sem qualquer saneamento básico, espaço de convivência, luz, água de qualidade, transporte, saúde, educação. E ainda as prisões, as Febens utilizadas como modo de segregação, através da tentativa do apagamento da existência e, até mesmo, da personalidade com a sistemática prática de torturas, com a privação de sol, de ar, de alimentos, medicamentos... Tudo muito “bem” estruturado para que se tenham condições subumanas, com sessões de espancamento, com a absoluta dificuldade de acesso à justiça; demonstrando o quanto são desnecessários, horrendos e perigosos, seja em grupos ou sozinhos. Tudo estruturado para a eliminação do estorvo do caminho... Afinal, para o “status quo” não há possibilidade de desenvolvimento numa sociedade onde mais de 46% da população é composta por descendentes do continente africano, somados a alguns povos indígenas que, depois de toda a dizimação, teimam em continuar a existindo. Como nos alerta Lasch, 1990:91: “Não há nada a ganhar mantendo-os vivos e nada a perder por suprimi-los.”.

Há necessidade de compreender o “fenômeno” do extermínio e do genocídio, das execuções sumárias, do assassinato em massa, da eliminação, da chacina, da desova, da execução extrajudicial que esconde todas as histórias de vida que mal se iniciaram; abatidas covardemente, impedidas do convívio, da segurança, da cidadania, com negação cotidiana ao direito de ser diferente e de ser tratado com igualdade! Esse é um processo que urge ser combatido! Isso é inaceitável em todas as esferas dos governos deste País que vão assumir suas “cadeiras” no dia 1 de janeiro de 2007. A população negra e indígena, como indivíduos ou cidadãos, não pode ter como projeto de vida o extermínio, real ou simbólico!

É hora de fortalecermos a campanha do “Laço Laranja”, pelo fim do extermínio da juventude negra e indígena! É preciso ampliá-la, com o envolvimento dos vários segmentos de defensores dos direitos humanos. Não vamos admitir, de forma alguma, que a vida dos nossos jovens negros e indígenas se tornem “objeto” sem valor, prenúncio constante de morte precoce!

Fontes bibliográficas:
LASCH, C. O discurso sobre a morte em massa. As lições do Holocausto. In: O Mínimo. Eu, p. 90-115. São Paulo Brasiliense.
DURKHEIM, E. 1978. O Suicídio. São Paulo, Abril (Coleção “Pensadores”).
ARENDT, H . 1990. Origens do Totalitarismo. São Paulo. Companhia das Letras.

Deise Benedito é Presidente da Fala Preta Organização de Mulheres Negras,
Membro do CNPIR - Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial,
Membro do GT Defensoria Pública do Estado de São Paulo e
Observatório da Defensoria Publica do Estado de São Paulo e
Fórum Nacional de Mulheres Negra.

Fonte: Rede de Mulheres Negras
deisebenedito45@yahoo.com.br

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