Wednesday, October 18, 2006

Éticas: do racismo ao desenvolvimentismo populista

Roberto da Mata


Quando eu pesquisei o “Você sabe com quem está falando?” como um “ritual autoritário”, oposto ao clima festivo e igualitário do carnaval e as irresponsabilidades festivas da malandragem, redescobri aquilo a que outros estudiosos do Brasil já haviam aludido. Refiro-me ao nosso mulatismo cultural que alguns reduziam às “raças formadoras”, responsáveis pelas nossas “taras de origem” e muitos outros à nossa formação sócio-histórica mais ibérica do que moderna (ou americana no seu trivial sentido estadunidense).

Se uma sociedade se acredita e representa como tendo uma formação heterogênea, qual é a lógica do seu funcionamento? Que o leitor consulte os nossos clássicos para neles encontrar o óbvio ululante. Realmente, uma sociedade formada de índios genéricos (sem língua e diversidade histórica, cultural e política), de negros (escravos) e de brancos (igualmente destituídos de concretude como manda a nossa “fábula das três raças” e o nosso “racismo à brasileira” por mim denunciados nos idos da década de 80), corremos o risco de ora pensar como brancos atrasados (porque portugueses), ora como índios ainda no estágio da pedra lascada e com mentalidade animista, ora como negros preguiçosos (ou, pior que isso, revoltados) a serem permanentemente vigiados pela polícia e tocados a chibata. Cada uma dessas entidades culturais inventadas pelos nossos intelectuais de vanguarda tinha uma perspectiva — uma leitura da realidade —, e, portanto, uma “ética”, para usar esse tesouro tão procurado e hoje tão escasso nesse nosso Brasil.

A conseqüência é um impasse sociológico de largo alcance, um dilema que criou um fantasma sociocultural de complicado exorcismo.

Pois, como constituir uma nação moderna; como integrar terra e povo num sistema harmonioso, se o nosso mundo era concretamente posto em funcionamento por uma massa de ex-escravos e um seleto clube de ex-senhores-barõesrepublicanos agora ministros de um Estado desenhado como igualitário? Como ser igual numa sociedade onde o diferente era sempre lido como o desigual e se constituía num valor cultivado, estabelecido e legitimado como centro da moralidade, da religião e da “natureza”? Se os negros e os índios representavam os inferiores, como assumilos como iguais, senão postergando, mistificando, dando um jeitinho, evadindo-se e protegendose dessa praga terrível chamada igualdade? O “Você [e jamais senhor] sabe com quem está falando?” nasce precisamente desse dilema… Daí resultou muita coisa que só um tratado poderia explicitar.

Uma delas foi a dualidade romântica que falava de uma terra inexcedível em belezas naturais (com o índio e, às vezes, o negro nela incluído), mas com um conjunto institucional inadequado ou podre, na formula natureza perfeita, povo tarado, atrasado, inculto e doente… Mas Deus, sendo brasileiro, foi bom conosco e inventou o desenvolvimentismo.

A questão não era apenas a de uma tara racial. Ela também resultava de um defeito econômico estrutural. Um erro de economia e da política das “elites” (como sempre frágeis, vis, imorais e dóceis) que nos antecederam. Com saliência nesse antecederam e nessa herança da qual não fizemos parte, nem tivemos lucros… De fato, se o “branqueamento” ou a mestiçagem universal demoraria séculos para produzir a tão sonhada homogeneidade hierárquica capaz de engendrar uma integração nacional perfeita, pois o seu ritmo e tempo eram biológicos, com a descoberta de leis da economia política, tudo mudava. Agora o problema era o de criar um instrumento que rompesse com as múltiplas variedades internas.

Esse instrumento transformador estava na economia e o seu veículo transformador era o Estado como o dono e a alavanca desse novíssimo diagnóstico integrador.

Agora, em vez de três raças e pelo menos três éticas, tínhamos o poder hierarquizador do “Estado nacional”, que iria finalmente criar as condições da nossa redenção. O resultado foi o famoso progresso econômico milagroso mas concentrador de renda e de poder politico em escala oriental. Pois mudamos o foco e o instrumento, mas não mudamos o plano geral de vôo histórico, continuando a viver sob a vigilância de uma burocracia estatal e de um empresariado que mudaram tudo, menos a desigualdade e a hierarquia do princípio do “cada qual no seu lugar” como um valor. O resultado, como revelou faz tempo um Albert Hirschman pouco ouvido, foi a invenção da indústria política do povo brasileiro, da seca, dos grandes e miraculosos desenhos institucionais e, agora, da fome. Quer dizer, mudamos de foco, mas continuamos a honrar a desigualdade social como um princípio estruturador da vida em sociedade.

Princípio e valor que admite uma ética para o pobre e outra para o rico; um valor para o governo e outro para o Brasil; uma sinceridade para o presidente e outra para o candidato que, por obra e graça do discernimento do povo, vai a julgamento final neste segundo turno eleitoral.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

O Glogo Online, 18.10.2006
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