Thursday, October 12, 2006

Crianças negras e pobres são maiores vítimas de violência

Crianças negras e pobres são maiores vítimas de violência

Unicef divulga estudo que confirma estatísticas sobre incidência do problema em vários países




Por Flávio Costa

“Com essas duas mãos, minha mãe me pega no colo, cuida de mim... e eu amo isso. Com essas duas mãos, minha mãe me bate – e isso eu odeio”. A frase é de uma menina de 10 anos do Leste Asiático, mas poderia ser proferida em qualquer lugar, inclusive no Brasil. O Estudo Global Independente da Organização das Nações Unidas revela que pelo menos 133 milhões crianças, em todo o mundo, já foram vítimas de violência doméstica.

Coordenado pelo sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro, o estudo foi apresentado ontem em Nova York, durante a Assembléia Geral da ONU pelo secretário geral da entidade, Kofi Anan. Com os resultados deste estudo, também mostrado em Salvador (veja box), espera-se que os países estabeleçam metas para a diminuição de violência contra crianças e jovens em suas mais diversas formas.

Na tarde de ontem, o coordenador do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) nos estados da Bahia, Sergipe e Espírito Santo, Ruy Pavan concedeu uma entrevista coletiva sobre o assunto no auditório do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, no Largo do Dois de Julho. Ele esteve acompanhado de representantes de entidades civis que combatem a violência contra menores de idade no estado baiano. Dados da Delegacia Especializada em Repressão a Crimes contra Crianças e Adolescentes (Derca) informam que, no ano passado, foram registrados cerca de 1,3 mil casos de violência contra a população infanto-juvenil, sendo que 23,5% referiam-se à violência sexual.

“O que este relatório da ONU vem mostrar como o mais importante é a reviravolta no sentido de tratar a questão da violência e de não aceitar certas justificativas para os maus-tratos cometidos contra crianças. Com este estudo, Kofi Annan se despede da secretaria geral da ONU (ele sairá em dezembro) deixando um importante tema em pauta”, declarou o coordenador do Unicef Ruy Pavan.

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TRÁFICO DE MULHERES

Pesquisa Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), da Universidade de Brasília, revelou, no Brasil, 241 rotas terrestres, marítimas e aéreas para exploração sexual e tráfico de mulheres, adolescentes e crianças. A maioria delas passa pelo Norte e Nordeste. No Brasil, o tráfico para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e adolescentes, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos. A Espanha é o destino mais freqüente, seguida de Holanda e Venezuela; 59% dos aliciadores são do sexo masculino, com faixa etária entre 20 e 56 anos; Salvador, Natal, Fortaleza e Recife estão na rota do turismo sexual.

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NÚMEROS

Dados do Estudo Global Independente das Organizações das Nações Unidas;

Quase 53 mil crianças morreram em todo mundo em 2002 em decorrência de homícidios;

150 milhões de meninos e 73 milhões de meninas abaixo de 18 anos são forçados a manter relações sexuais ou submetidos a outras formas de abuso sexual;


218 milhões de crianças em esquemas de trabalho infantil, das quais 126 milhões em atividades perigosas;

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Maus-tratos em vários países

Durante os anos de 2003 e 2005, o estudo recolheu dados sobre maus-tratos cometidos contra menores de idade em todos os 189 países integrantes da ONU. A publicação reconhece que milhões de crianças e adolescentes são diariamente submetidos a diferentes formas de violência na família, na escola, em abrigos e instituições de privação de liberdade, no trabalho e na comunidade. Instituições e organismos estatais que trabalham contra o abuso infantil em suas diversas matizes foram fontes de informação para pesquisa.

Foram recolhidos também depoimentos de crianças, como aquele que inicia esta matéria. “Ouvir uma criança, que sofreu maus-tratos, não significa demagogia, nem se procura que ela aja como um ventríloquo repetindo palavras ditadas por um adulto”, afirma Pavan. Ele acrescenta que o depoimento de uma criança violentada pode ser obtido de outras formas, que não apenas através da fala. “Elas podem querer desenhar para poder demonstrar o que sofreram. As palavras muitas vezes são inibidoras”.

Para o coordenador do Unicef, todo o problema da violência infantil passa pela solução do Estado em assumir sua responsabilidade e a sociedade civil fazer o seu papel de cobrança. “As ações não podem ser mais pontuais, elas têm que estar conectadas. No Brasil, e na Bahia de um modo geral, nós temos a estrutura institucional necessária para combater a violência contra crianças e adolescentes, mas não uma conexão. Pavan afirma que as políticas públicas para combater a violência têm que envolver todos os setores do Estado, a educação, a saúde, a segurança pública como um instrumento socializador e não apenas de repressão.

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Humilhações e assédio sexual

A violência contra menores de idade é um problema global, na medida que os atos violentos são justificados em todas as sociedades, a partir de um determinado ponto de vista cultural. A exemplo das punições físicas, humilhações e até assédio sexual são vistos como disciplina. Neste sentido, o estudo da ONU revela que 106 países não proíbem o uso de castigos corporais e 147 não os proíbem em instituições assistenciais alternativas.

“A família é ainda vista como uma espécie de instituição inviolável, ou seja, o parente agressor é protegido dentro do próprio âmbito familiar”, diz Pavan. Para ele, “a criança começa a se acostumar com a violência como um aspecto normal do seu cotidiano e ela acaba por reproduzir isso na escola, que por sua vez também tem os mesmos valores de violência. É um ciclo vicioso”.

Sobre maus-tratos nas instituições de ensino, o estudo aponta que apesar dos 102 países que aboliram os castigos corporais na escola (vide a antiga palmatória) nem todos aplicam integralmente a proibição. “Na escola, aquele que é visto como diferente, como o gordo, ou o negro em um ambiente de maioria de brancos e magros, vai ser discriminado, sujeito a uma violência psicológica”, afirma Ruy Pavan.

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Jovens pobres são maiores vítimas

Cor Negra ou parda, pobre, morador da periferia e de baixa escolaridade. Mais um detalhe: sem antecendentes criminais. Este é o perfil padrão das crianças e adolescentes vítimas de homicídios na região metropolitana de Salvador. Entre 1998 e 2004, 361 jovens entre 0 e 19 anos de idade foram assassinados. Os dados do Fórum Comunitário de Combate à Violência (FCCV) foram levantados pela coordenadora-executiva do órgão Heloniza Costa, que durante seis anos recolheu informações no Instituto Médico-legal Nina Rodrigues.

“A nossa pesquisa demonstra que uma relação intrínseca entre a discriminação racial e a pobreza com a violência. Mas não porque os pobres são violentos e sim porque são justamente as vítimas”, afirma a coordenadora-executiva da FCCV, Heloniza Costa. Para o advogado do Centro de Defesa da Criança e Adolescente Yves Roussan (Cedeca/BA), Maurício Freire, os assassinatos de menores de idade estão diretamente ligados ao racismo e procedimentos dos policiais.

“Posso assegurar que mais da metade dos casos de homícidio envolve um jovem, tem a participação de um policial. É preciso humanizar a formação dos agentes públicos de segurança”. De acordo com o advogado, dos 944 homicídios acompanhados pelo Cedeca/BA, apenas 112 resultaram num inquérito civil. Desses, 23 foram levados ao julgamento, resultando em 22 condenações.

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Fundo é desconhecido

Por Cilene Brito

Apesar de ter sido instituído em 1990, para garantir a captação de recursos financeiros destinados a projetos e programas em defesa dos direitos da criança e do adolescente, o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMDCA) ainda é desconhecido por diversos órgão ligados à causa. O desconhecimento maior é por parte da população que pode ter descontos na dedução do Imposto de Renda ao fazer doações ao fundo. No ano passado, foram arrecadados através de doações R$1,358 milhão, quando o necessário seria, no mínimo R$3 milhões.

A função do FMDCA e a importância da doação foram discutidas ontem durante o Seminário da Infância e da Juventude - o Ministério Público e os desafios para efetivação do Eca, realizado no auditório do órgão, em Nazaré. Promotores, juízes, delegados e representantes dos conselhos tutelares de todo estado participaram do evento que teve como objetivo capacitar e estimular maior concentração de esforços entre os órgãos envolvidos na defesa das questões infanto-juvenis.

“O Fundo Municipal da Criança e do Adolescente é um mecanismo importante para alavancar os projetos e programas na área da criança e do adolescente. É importante que toda a população se mobilize na manutenção desse fundo”, afirmou o consultor de políticas sociais e recursos na área da criança e do adolescente, Maurício Vian. O especialista afirma que qualquer pessoa pode fazer doações ao fundo. Em caso de pessoa física, esta poderá deduzir até 6% do imposto devido. No caso da pessoa jurídica, a dedução é de até 1%. “Este é o maior incentivo fiscal destinado à pessoa física do Brasil”, salientou.

Ele lembra que os recursos destinados ao FMDCA só podem ser aplicados em projetos de defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social ou pessoal ou em projetos de combate ao trabalho infantil, à profissionalização de jovens, além de orientação e apoio sociofamiliar. Para efetivar as doações, os interessados devem procurar os conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente e solicitar uma declaração que comprove a doação. Os conselhos são instituições compostas por membros da comunidade e representantes do poder público e são responsáveis por definir a aplicação dos recursos do FMDCA.

Durante o evento, também foram discutidas as principais necessidades dos operadores dos direitos da criança e adolescente. De acordo com a coordenadora do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça da Infância e Juventude (Caopjij), Lícia Oliveira, entre as principais demandas estão a falta de creches e unidades para internação de jovens usuários de drogas, leitos em unidade de terapia intensiva (UTI), pediátrica e neonatal e a criação de conselhos tutelares. A coordenadora do Caopjij ressalta que dos 417 municípios baianos, apenas 235 possuem conselho tutelar. “É um número insuficiente para o universo de cidades que temos no estado. Estamos lutando para que todos os municípios baianos tenham o seu conselho”, diz lembrando que há três anos existiam apenas 73 conselhos tutelares na Bahia.

Aqui Salvador, Correio da Bahia, 12.10.2006 - www.correiodabahia.com.br

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