Tuesday, November 21, 2006

Multidão afrodescendente vai às ruas reivindicar direitos

Membros de entidades ligadas ao movimento negro participaram da Marcha Zumbi dos Palmares



Jairo Costa Júnior

Reparar. Segundo o Aurélio, compensar é um dos significados dados para a palavra. Foi em busca de mecanismos de compensação relegados ao plano inferior através dos séculos que centenas de pessoas participaram na tarde de ontem, do Campo Grande à Praça Municipal, da 27ª Marcha Zumbi dos Palmares. A caminhada foi organizada pelo Conselho Nacional de Entidades Negras (Conem), como forma de homenagear o Dia Nacional da Consciência Negra e o aniversário da morte de Zumbi, símbolo máximo da resistência latino-americana à opressão contra africanos e seus descendentes.

Desde às 14h de ontem, membros de entidades ligadas à educação, cultura e direitos humanos, líderes religiosos, políticos, intelectuais, estudantes, artistas, atletas e simpatizantes das causas ligadas aos afro-brasileiros se reuniram no Campo Grande para informar à população sobre as principais bandeiras do movimento negro nos próximos anos. “É o momento de expor nossas reivindicações mais urgentes, que são a criação de um plano de cotas mais abrangente e a aprovação do Estatuto da Igualdade racial”, lembrou o coordenador estadual do Conem, Normando Batista.

Entre as lideranças de entidades voltadas à defesa dos direitos dos negros ouvidas pelo Correio da Bahia, é corrente a queixa de que sistemas de cotas adotados por algumas universidades brasileiras ainda está longe do ideal. “São cotas sociais e não étnicas. Basta olhar dentro das salas de aula de cursos de maior prestígio, como medicina e direito. A maior parte dos alunos é constituída de brancos”, disparou o vice-presidente da Associação Cultural do Reggae, Magnaldo Guimarães, que também integra o Conem.

Guimarães explica que há sistema de cotas para negros nas penitenciárias, nas marquises, nos empregos sem status sociais, mas não existe o mesmo na fatia mais generosa do mercado de trabalho e no sistema educacional superior do país. “Tudo que é de muito ruim na nossa sociedade – favelas, prisões, sinaleiras – está sempre cheia de negros. É necessário questionar por que não temos a mesma proporção no que tem de melhor”, analisou Guimarães.

Enquanto a banda Pagoleiros executava sambas-de-roda no trio elétrico, pedindo “reparações já” em forma de canção, representantes de organizações não-governamentais tentavam explicar os motivos pelos quais o Congresso Nacional até o momento não aprovou o Plano de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. “Não há interesse de grande parte dos nossos políticos em tornar reais projetos que sirvam para compensar a enorme segmentação que aflige a população negra no país. Basta o tema entrar em pauta, para a Câmara dos Deputados esvaziar”, criticou Batista, que também preside o conselho consultivo do Centro de Educação e Cultura Popular (Cecup).

Apesar do atraso de mais de duas horas para iniciar a marcha, nada parecia arrefecer os ânimos das pessoas que se juntavam em prol das causas reparatórias, a exemplo da implementação no resto do país da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas de ensinos médio e fundamental. Até o momento, apenas a capital e algumas cidades do interior obedeceram à legislação.

“Salvador foi pioneira na aplicação da legislação, mas é preciso que todas as cidades façam o mesmo, pois essa seria única forma de fazer com que a grande população negra existente no país possa aprender sobre suas raízes, sua ancestralidade, elevar a auto-estima. Veja que nos ensinam até a mitologia grega, mas não a iorubá, que é belíssima e muito mais próximas de nós”, ressaltou a advogada Darci Xavier, coordenadora da Comissão de Implementação da Lei 10.639/03 da Secretaria Municipal de Educação e Cultura.

Já passava das 18h30 quando o cortejo, composto também por grupos de capoeira e música, atingiu a Praça da Piedade, ao som de reggae, samba-de-roda e pagode. Embora dançassem e repetissem em coro as músicas executadas nos dois trios elétricos, ninguém parecia ter esquecido as palavras ditas horas antes pela professora Macota Valdina, uma das mais antigas militantes do movimento negro baiano: “Devemos fazer tudo com alegria, mas somos obrigados também a lembrar que a marcha não é uma festa, é o momento de reivindicar os espaços a que temos direito”.

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Lázaro Ramos recebe homenagens

No aniversário de 35 anos da oficialização do 20 de Novembro como o Dia da Consciência Negra, a comunidade afro-brasileira de Salvador que foi à 27ª Marcha Zumbi dos Palmares recebeu de presente a visita do mais ilustre negro baiano no universo das artes dramáticas. Cabelo e bigodes raspados, o ator Lázaro Ramos abandonou o figurino de Foguinho, protagonista da novela global Cobras e lagartos, e participou do evento como um dos homenageados da caminhada.

Lázaro Ramos chegou por volta das 16h30 e causou frissom no Campo Grande. Todo mundo queria tocar, abraçar, falar ou pedir autógrafos ao ator cuja carreira foi iniciada no Bando de Teatro Olodum e que, à noite, seria homenageado com a Medalha Zumbi dos Palmares na Câmara de Vereadores. Solícito com o povo que lhe jogava camisas, bonés e cadernetas no afã de levar a assinatura do artista, Ramos era o símbolo do orgulho negro.

“O melhor de tudo é receber o afago e o carinho do povo de minha terra, mas é importante lembrar que ainda faltam muitas coisas a se conquistar. E precisamos cobrar isso tudo, mostrando à sociedade através de eventos como esse que temos muitas questões a serem resolvidas”, afirmou o ator. Mas Lázaro Ramos não foi a única personalidade negra ligada à arte que participou da marcha. De surpresa, a cantora Margareth Menezes apareceu na concentração, no Campo Grande, e cantou, à capela, o hit Alegria da cidade, espécie de hino informal da negritude, sendo observada na pista por um dos autores da música, o compositor Jorge Portugal.

Além de Lázaro Ramos, Zumbi e João Cândido (líder da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910) a marcha homenageou também a cantora Zezé Mota, o ator de cinema Mário Gusmão (1928-1996), a feminista Lélia Gonzáles (1935-1994) e duas figuras de proa no movimento negro que morreram este ano: o sociólogo autodidata Lino de Almeida (1958-2006) e o agitador cultural Luís Orlando da Silva (1945-2006).

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PM promove curso de cultura negra

Por Camila Vieira

A Lei 10.639/03 obriga todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio da rede pública e privada, a oferecer a disciplina de história e cultura afro-brasileira. A implantação da medida e sua repercussão na sociedade brasileira foi o tema da aula magna do curso de especialização para a disciplina ministrada pelo professor paulista e presidente do Instituto Brasileiro da Diversidade, Hélio Santos, ontem, às 9h, no Colégio da Polícia Militar, nos Dendezeiros. O curso em comemoração ao Dia da Consciência Negra e Combate ao Racismo tem carga horária de 60 horas e está sendo promovido pela Associação Nacional para Advogados Afrodescendentes (Anaad) em parceria com a Fundação Visconde de Cayru e Colégio da Polícia Militar.

O Colégio da PM é a primeira instituição baiana que se preocupa em especializar os professores com o objetivo de implantar de forma adequada a disciplina. O professor paulista, mestre em finanças, doutor em administração e militante do movimento negro há 27 anos, Hélio Santos, afirmou que na Bahia essa iniciativa é inédita, mas 400 profissionais de outros estados já foram capacitados para ministrar a disciplina. “Os mestres que forem formados podem ensinar a matéria e reproduzir o curso como multiplicadores”, disse o mestre, assinalando que o artigo nº79 da lei é bem claro com relação à obrigatoriedade da matéria no currículo das instituições de ensino médio e fundamental.

Santos falou sobre a importância do Dia da Consciência Negra. “É um dia em que devemos participar de rodas de samba, capoeira e comer acarajé, mas acima de tudo isso é um momento crucial para a reflexão. Precisamos remontar a história de meio milênio atrás quando no sul desse estado os portugueses chegaram”, lembrou o professor. Durante a aula ele fez questão de ressaltar que o Brasil viveu 350 anos de escravidão e foi o último país a extinguir a assinar a Lei Áurea. “Precisamos avaliar toda a história e a partir daí refletirmos no que pode ser feito”, afirmou o militante.

A presidente da Anaad, Sílvia Cerqueira, considera que o cumprimento da lei na escola da PM é um ato de reparação e precisa ser seguido por outras instituições de ensino. “É uma iniciativa que visa a igualdade, uma ação afirmativa. Está aqui hoje (ontem) é uma trajetória bonita, mas ao mesmo tempo sofrida”, disse. Ela considera que o cumprimento da obrigatoriedade da disciplina vai minimizar as desigualdades. “Esse é um grande passo para aprendermos a conviver com as diferenças”, considerou.

O diretor da Fundação Visconde de Cayru, Walter Cripino da Silva, falou sobre a satisfação em ser parceiro do Colégio da Polícia Militar. “É muito gratificante fazer parte de um projeto como esse. Espero que o nosso laço jamais seja desfeito”, afirmou. Na opinião do gestor da instituição que existe há 101 anos, somente através da cultura e educação os homens vão ter direitos iguais na sociedade. “Esses são os principais alicerces para o crescimento. Acredito que para a cultura não existem fronteiras, ao contrário ela universaliza os homens”, finalizou Silva.

Durante a apresentação do curso, o professor Jorge Portugal emocionou a platéia quando recitou seu poema Pele de Ébano, canção gravada pelo cantor Lazzo Matumbi. O coronel Deraldo Carvalho Neto representante do comandante geral da PM Antônio Jorge Ribeiro, justificou a ausência do comandante e fez um discurso emocionado: “O negro tem muito valor e nossas raízes hoje (ontem) estão felizes. Tenho certeza que através de uma iniciativa como essa a PM se torna mais brava, mais altaneira”, finalizou o coronel.

Aqui Salvador, Correio da Bahia, 21.11.2006
www.correiodabahia.com.br

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