Friday, November 24, 2006

O mito da igualdade


O mito da igualdade

titulosMateria AZUETE FOGAÇA

O jornal “O Estado de S. Paulo” noticiou recentemente comportamentos racistas na Universidade de Brasília, primeira universidade federal brasileira a adotar o sistema de cotas. A questão do racismo no Brasil tomou vulto nos dois últimos anos, exatamente por conta da ação dos movimentos negros que, na defesa da implantação de ações afirmativas que minimizem os efeitos perversos da discriminação racial, enfrentam a difícil tarefa de desmontar o mito da democracia racial que aplaca a consciência das nossas elites, revelando a verdadeira face da relação entre brancos e negros neste “Brasil moreno”.

O episódio da UnB é emblemático, porque trata do preconceito que sustenta relações aparentemente cordiais.

A referência aos alunos negros como “a crioulada” teria sido feita apenas a título de “fazer graça”, como justificou o professor acusado de racismo, já que é reconhecido como “brincalhão” e “destemperado”.

Essa é uma justificativa típica do racismo à brasileira, no qual os não-negros se dão o direito de usar expressões pejorativas, herdadas do período escravista, a pretexto de que, ao longo do tempo, elas passaram a ser de uso corriqueiro e, supostamente, teriam perdido seu caráter discriminatório.

Essa é mais uma das grandes mentiras da nossa “democracia racial”.

Em primeiro lugar, porque, na verdade, essas expressões se consolidaram no vocabulário dos brancos exatamente porque eram ditas num contexto de dominação e de violência, que não permitia que negros se insurgissem contra a forma como eram tratados e contra agressões verbais e os rótulos que lhes eram conferidos arbitrariamente.

Mesmo quando se considera o tratamento mais brando que eventualmente se dispensava aos escravos que trabalhavam dentro da casagrande, em nenhum momento isso significou a aceitação da igualdade entre brancos e negros. Eram relações que, embora ocorressem no espaço doméstico, mantinham a distância que separava os escravos de seus proprietários.

Em segundo lugar, porque as expressões consideradas “afetuosas” ou “brincalhonas” são as mesmas largamente usadas quando negros e brancos se confrontam como tais: e, aí, palavras como crioulo, neguinho, pretinho, mulatinha, moleque etc. rapidamente tomam o sentido original — o da condição de inferioridade que a nossa sociedade ainda confere aos negros.

Como afirmou Joaquim Nabuco, o “bom senhor” era aquele que só administrava seus escravos “com brandura relativa..., quando esses escravos obedeciam cegamente e se sujeitavam a tudo”. Atualmente, o “bom senhor” foi substituído por aqueles que dizem que não são racistas, porque “até têm um amigo negro”; ou por aqueles que se referem aos negros que mantêm certa aceitação dos padrões de relacionamento que lhes são impostos, como “negros de alma branca”. E negros de alma branca não reclamam dos termos que os brancos usam em suas “brincadeiras”.

A atitude dos alunos negros na UnB certamente é considerada por muitos como um exagero; afinal, o professor sempre foi tão brincalhão! Não são poucos os que, defendendo a “democracia racial”, imputam aos negros a condição de racista quando se trata de reagir e denunciar os episódios de discriminação. Acontece que estamos no século XXI e mais de cem anos se passaram após a abolição da escravidão; se fôssemos de fato uma democracia racial, tais expressões há muito já não estariam em uso. Nos Estados Unidos, hoje, a não ser que queira criar grandes problemas ao afirmar publicamente seu preconceito contra os negros, nenhum branco se atreve a usar o termo “niger”, que, entre nós, equivale ao termo “crioulo”. E isso ocorre não só porque existem leis anti-racismo, mas, principalmente, porque os próprios negros não admitem receber esse tipo de tratamento.

Se o escravo submisso, que Nabuco classificava como um “cadáver moral”, é uma “prova de como a humilhação penetra fundo na alma e no coração da população escrava”, a atitude dos alunos da UnB talvez seja uma prova de que as novas gerações de negros brasileiros não vão se transformar nesses cadáveres porque não vão se deixar enganar pelo mito da igualdade, ainda que isso implique se insurgir contra a ira de alguns e contra as “brincadeiras” de muitos.

AZUETE FOGAÇA é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.

O “bom senhor” agora é quem diz não ser racista porque “até tem um amigo negro"

Opinao, O Globo Online, 24.11.2006
www.oglobo.com.br

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